quarta-feira, 17 de novembro de 2010
Regressada há uma semana e pico de férias, peguei no Pisca e lá fui. Não notei diferenças na visibilidade. Como de costume, não vejo nada de noite, cega pelos faróis alheios e pela fraqueza das minhas próprias luzes (recém-compradas, para que conste). No sempre complexo regresso a casa (verificar se não há ninguém na rua-sair do carro a correr com os faróis acesos -abrir garagem- regressar ao carro-entrar a todo o gás -fechar garagem, não sem antes verificar se os maus não entraram no edifício) reparei, finalmente, que um dos faróis não funcionava. O Pisca não vê do olho esquerdo.
Bah! Peanuts! Eu já não via nada mesmo! De qualquer forma, há pelo menos 3300 Tap Taps que nem um só farol têm, nem piscas, nem qualquer tipo de luzinha. O mesmo com os camiões, aos milhares, com um farol a funcionar, no máximo. À noite, parecem todos motinhas a circular com um único pontinho de luz. Por isso, PISCA adaptou-se finalmente à realidade local.
Naturalmente, para estas situações há sempre uma qualquer lei de Murphy que se aplica. Nesta semana fui parada três vezes pela policia haitiana, sempre de noite, em estradas sem movimento e eu, sempre sozinha no carro. Ontem, meia hora depois de ver mais um carro da policia a passar só com um farol ligado, fui parada, mais uma vez, p'los seus guardas.
Em crioulo falaram. Ainda bem, fiz de conta que não percebia bem.
"-Problema, problema madame, um dos faróis não funciona." (cara séria) (rua vazia, escura)
"-Oi?"
"-Farol, luz, não funciona."
"-Jura?! Xi, quando terá sido? Não dei conta. Ai que chatice! Quem terá sido o malandro?" (cara de parva, com um leve sorrisinho inocente) (rua vazia, escura)
"-Documentos" (cara mais séria)
"-Com certeza seu guarda" (xi, os documentos estão em nome do mecânico e a carta de condução é daquelas cor-de-rosa que já nem em Portugal se usa)
(deverei protestar, dizer que não é justo já que há 3300 tap taps sem farol e outros tantos carros de policia em igual ou pior estado? é melhor não. continuo com a carinha de parva)
"-Pode seguir!!" (cara séria)
"-Mas, oh seu guarda, já agora, é o farol direito ou o esquerdo?? Que chatice, vou já, já reparar!"
ACHAS??? Afinal, Pisca que pisque tem sempre que ter um aberto e outro fechado, certo?
sexta-feira, 30 de abril de 2010
Falta do que Fazer...
Uma mao puxa ali, uma outra puxa a perna, outra aproveita-se e sobe onde nao deve para, num exercicio meio contorcionista, 4 intrusos (eu e meus desconhecidos haitianos) invadirem o meu ex-escritorio. Juro, ainda pensei que estava a segundos de por os olhos em cima do meu antigo computador e, mais importante, do unico exemplar da minha quase-tese-de-mestrado Desporto para a Paz e Desenvolvimento (o caso do Haiti). Mas, dentro da redaccao, nada. Papeis. O chao estava branco, um misto de po e folhas.
Nem uma coisa, nem outra. Ja nao tem importancia. Recomecei a reescrever a quase-tese e, desde ontem que recuperei o tempo (e o trabalho) perdido. As linhas que hoje acrescentar ao trabalho vao ser totalmente novas. Teclado? Bem, ate aqui compreenderam tudo, nao? E onde era mesmo que estavam os acentos e o c de cedilha?
terça-feira, 23 de março de 2010
Mais do mesmo
Para mim, é penoso ver emails, quaisquer que sejam. Simples: ainda não tenho computador (nem uma secretária, ou cadeira e outros pormenores afins, mas isso é uma outra conversa). A (quase) alternativa é chegar muito cedo à rádio, embora essa técnica esteja a ser cada vez mais utilizada pelos jornalistas haitianos (vindos de um dos 400 campos de deslocados da capital), que optam por entrar duas horas antes do horário para, também eles, irem à caça da internet, i.e., das redes sociais.
Ou seja, quando finalmente encontro um computador livre, o que é que encontro? Uma caixa cheia de emails sobre o barco. Bem, também pode ser pior, como aquele email da administração da missão da ONU que era bem claro: É PROIBIDO DORMIR NOS ESCRITÓRIOS DA BASE. TÊM 48 HORAS PARA SAIR. (Quase que juro que estava a negrito). Razão oficial: “Agora, os funcionários da ONU já têm alternativa: o barco.” GRRRRRR, grunho eu.
Parecia uma declaração de guerra. Eu, no imediato, optei pela técnica da defesa: “eles escreveram a palavra office, não fazem referência às tents montadas às portas dos offices.” OK, OK, depois rendi-me.
Passo a explicar. Sugestão da minha irmã querida, comprei para levar para o Haiti uma daquelas tendas mágicas, que se montam sozinhas, mal retiradas do respectivo saco e atiradas ao ar. LINDO! Mas, e depois? Estalamos os dedos e ela dobra-se em oitos (8s) e encaixa perfeitinha na sacola? Nã!!
Quanto ao manual de instruções, garanto que se algum dia encontrar o autor/ilustrador terei uma conversinha com ele, daquelas à moda do célebre sofa, a mesma que servirá para a minha querida irmã.
Mas, de regresso ao desmontar: 60 minutos depois do início do acto da pseudo desmontagem, tinha cinco haitianos à volta da tenda (garanto que a tenda ganha vida, dá cacetadas, empurrões e outros amassos, quando mal manuseada), numa guerra para enfiá-la na sacola.
“Li pa bon”( não está bem), dizia um.
“ nap recomencé” (vamos recomeçar), pela enésima vez, acrescento eu.
“ah, mon chere!!” (expressão aparentemente inofensiva mas que em crioulo é qualquer coisa como: ‘ah, meu tanso, não é assim, só estás a fazer cagada) nota: não fui eu que disse, foram eles.
Enfim, no final, os cinco homens conseguiram (quase) dominar a bicha e dobrá-la em forma estranha, e três vezes maior do que o tamanho do saquinho.
Tive, portanto, que mudar de casa. Barco? Nã, não sou assim tão fácil. Regressei finalmente à minha casa, a tal que nunca caiu. Faz hoje uma semana que recomecei a dormir debaixo de cimento, de betão e tantas outras coisas que podem desmoronar e eventualmente causar algum tipo de desconforto. A readaptação ao cimento tem sido gradual. Primeiro dormir de luz acesa. Depois, perceber que se houver um terramoto, a electricidade (ou gerador) são das primeiras coisas a falhar. Apague-se a luz. Porta aberta, aconselhou o meu chefe. Não se aplica ao meu caso. À saída da porta tenho uma escada à direita e uma varanda à esquerda, normalmente as primeiras duas coisas que caem em primeiro lugar. Ainda não tive tempo para decidir qual o canto à casa/estúdio que será eleito em caso de tremideira. Para analisar daqui a umas duas semanas. Agora, vim no instante a Macau e já volto. Depois, logo penso de novo em cimento, betão e, pior... no barco. GRRRRR.
quinta-feira, 11 de março de 2010
Sauna Flutuante
Antes mesmo do barco chegar, o povo da missão já lhe tinha dado nome. O Love Boat. Eu, só para contrair, dei-lhe outro título: Titanic. Na verdade, a barcaça, chama-se qualquer coisa Esmeralda. Pouco importa, até porque já teve vários nomes nas ultimas décadas, o último dos quais ainda é legível, apesar da mais recente mão de pintura para efeitos cosméticos.
(continuação) Bote parte, ondas de, literalmente, marear qualquer um e... nada. A viagem foi interminável. E eu só conseguia ouvir algumas alminhas a comentar: 'ai que estranho, é a primeira vez que apanhamos uma viagem assim'. Sim, claro, logo no dia em que eu decido vir é que acontece! Deu-me a impressão que estava numa batalha: de um lado eu, a pessimista do Titanic, do outro, todos os restantes passageiros, os tais da Esmeralda Love Boat. Mas a sorte (azar) estava do meu lado. Não, eu nunca critico.
Mal entrámos na barcaça, (não sem antes termos saltado olimpicamente do bote para a plataforma, assim ditou a maré) começaram-me a subir os calores. Mais literalmente era impossível: não havia ar condicionado! Acho que até o próprio Titanic, o original, teria algum tipo de refrigeração (oops, sem qualquer tipo de referencia ao acto final).
A partir daí, a minha batalha estava ganha. Por muito que me tivesse calhado o melhor quarto (de certeza que foi dedo dos optimistas), que a comida até não fosse má (mas a cozinha fechava às 8.30), que estivesse rodeada do gangue (um misto de tugas, brasileiros e a nossa italiana), que o bar estivesse aberto sem hora de fecho, que o ginásio estivesse a rolar (embora as duas piscinas - interior e exterior- estivessem sem água), que, que... nao havia como evitar: o Titanic era uma sauna! Se calhar é moda noutros paises. Ando um bocado afastada dessas lides.
última confissão. Depois de uma noite suada (e isto tem tudo menos segundos, terceiros ou quartos sentidos), duche em água... quente (e havia dúvidas??), seguido de pequeno-almoço numa sala também... (escusado repetir), decidi fazer aquele sorriso-de-quem-vai pedir-algo-que-não-está-nas regras. "Por favor, señorita, puedo ir a desayunar arriba? Juro que cuando termine vengo a traer todas las cosas". (E juro mesmo que tinha intenções de entregar toda a louça à procedência)
terça-feira, 2 de março de 2010
Haiti Cherie
No regresso a base, pela manha, ja atrasada, Pisca foi barrado na entrada. Joguei todas as cartas: a vitima e sobrevivente, a falta de estacionamento num raio de 5 kms, o facto de ser imprescindivel para o funcionamento da radio (ok, exagerei um pouco)...
A ultima da Missao e a chegada do cruzeiro. Ha mais de um mes que se falava. No inicio, pensei que fosse piada. De mau gosto, alias. Mas nao. Um verdadeiro cruzeiro esta fundeado ao largo da capital. Veio albergar os que trabalham na Missao da ONU. Com piscinas, ginasio, restaurantes e tudo o que vem no habitual pacote. Felizmente, nao e obrigatorio. Mais nao posso comentar. Ossos do oficio.
A vida na Log em quase ou nada mexeu (pelo contrario, ja tremeu, umas 4 vezes a 4 ponto qualquer coisa so na ultima semana) desde a minha saida no inicio de Fevereiro. Mas, nas ruas, a vida avanca. Malas de viagem, lagartos feitos de lata, banana frita acompanha de uma especie de rojao (numa competicao para encontrar o mais frito e oleoso), cartoes pre-pagos de telemoveis, riz national (com feijao), tulipas brancas, macos de tabaco 'Comme il faut' (na verdade, il faut nao os fumar, so mesmo em caso de ultimo recurso, considerada tambem ideia muuuiiito radical), pinturas que resistem a sol e chuva, rum Barbancourt (marca nacional, tomada com muita coca-cola e algum desespero - radical). Tudo isto esta a venda nas ruas. Isto e mais alguma coisa. Porque os haitianos nao querem perder tempo. Nem podem.
Alguns dos campos de desalojados ja estao com cara nova: alinhados com tendas uniformes, acabadinhas de chegar das linhas de producao de algum pais doador. Para ja resistiram as chuvas, mas para ja foi so um primeiro e timido aviso (pelo contrario, a sul do pais, o mau tempo matou ontem mais de vinte pessoas). A epoca dos furacoes e mais tarde, comeca la para os finais de Maio. Pena as tendas serem todas brancas ou beges. O haiti e um pais de cor, muitas cores.
Nos campos de desalojados ha um misto de cheiros, a maioria demasiado agressivos, mas tambem musica, oracoes, jogos de cartas, bailes improvisados de fazer colar os corpos, aulas para os mais pequenos, ecrans gigantes com projeccao de filmes, jogos de futebol e campanhas humanitarias.
Apesar das replicas, das chuvas, de 3milhoes de pessoas ainda nao terem coragem de dormir sob cimento (eu fi-lo no tal dia que sai radicalmente com o Pisca e, logo nessa madrugada, a terra voltou a tremer. Apesar de estar a dormir num colchao estrategicamente colocado junto a porta de saida, de nada valia. Nao acordei), de ainda se chorar (e sonhar) os mais de 25o mil mortos, a Vida continua. Na sexta fui festeja-La, a convite de um dos animadores da radio. Eu e o gangue lusofono (Mariana, Ana, Mariana) e o Pisca (o prisioneiro da Log). Fomos recebidos no jardim da casa do Anderson, onde la estava a tenda (elemento omnipresente), varias familias (primos, tios, a vizinha e seus tios e primos, a sra das limpezas e respectivos familiares) e, como sempre, musica a acompanhar. Foi noite de Kompas, o genero nacional. Um misto de Africa e Caraibas, com um toque final muito haitiano. So dancado com cola nos corpos. Uma especie de dois em um.