sábado, 30 de janeiro de 2010

Uma ex-(quase)desilusao







Foi como um soco no estomago, daqueles que doem mesmo, quando os abdominais estao completamente distraidos. Numa altura de crise, nao esperava que ele, Parnel Beauvoir, o elemento mais velho da minha equipa, anunciasse a frente de todos os jornalistas que iria de ferias, quando, na verdade, eu ja lhe tinha dito que nao poderia faze-lo nessa altura.

Ok, e so um pormenor de administrativo, uma questao laboral, uma infeliz planificacao...
Talvez. Mas nao nestas circunstancias. E nao com o Parnel. Ele, o mais velho dos cinco da equipa. Ele, o antigo director de uma escola em Les Cayes (cidade do sul do Haiti). Ele, que saia todas as sextas a uma da tarde para regressar a cidade natal (eu fechava o olho ao cumprimento do horario de trabalho e piscava-lhe o outro, desejando-lhe bom f-d-s). Como podia nao deixa-lo sair mais cedo?Em Les Cayes, tinha a mulher, tres filhos (o quarto morreu em Agosto passado, poucas horas depois de nascer), um sobrinho orfao, e umas outras 3 criancas que, no Haiti, sao conhecidas por 'restavek' (rester avec). A domesticidade infantil afecta mais de 200 mil criancas no pais. Escravatura moderna tambem lhe chamam. Nao para o Parnel. Sempre jurou a pes juntos que na sua casa, todas as criancas, as suas e as dos outros, tinham as mesmas tarefas e todos iam a escola. Nao tenho a menor duvida.

Voltando ao soco, como foi possivel nao respeitar o que lhe tinha dito? E a frente de todos os outros?

Ele, a quem eu recorria para dar licoes de moral aos restantes quatro (quando eu sozinha nao dava conta do recado). Ele, o mais respeitado por todos; ele que nunca se zangava a nao ser quando o seu carregador do telemovel desaparecia (mas que ele insistia em deixa-lo na redaccao, quando sabia tratar-se de um objecto muito apetecivel, sobretudo no seio de uma equipa pouco organizada e muito esquecida). Ele, que me foi esperar a entrada de Les Cayes, na primeira vez que conduzi o Pisca-Pisca (o meu carro-quase-jipe) para fora da capital. Ele, que me recebeu a mim e aos meus co-pilotos com bebidas e que, as escondidas, pagou a um haitiano para tomar conta do meu Pisca-Pisca e dar-lhe uma ensaboadela.

Ele, que se lamentava sempre que eu me ausentava do pais (bem, nao sei se era por minha causa, talvez fosse por saber que a minha substituta lidera com chicote).

A questao, das ditas ferias, foi resolvida com uma reuniao extraordinaria. Pela primeira vez, coloquei o fato de supervisora, juntei os 5 e anunciei que, a partir desse dia, estavam extintos os metodos da Mari, tambem conhecidos por regras-com-excesso-de-flexibilidade. Entravam em vigor as regras ONU.
Parnel, mais uma vez falou por todos, e por si. Com a calma e a sabedoria de sempre. Aquele que parecia um ponto de ruptura com a equipa, nao foi mais do que um dia nublado. Parnel acabou por decidir nao ir de ferias, eu acabei por recuperar as regras-com-excesso-de-flexibilidade. Na sexta feira seguinte, como era nossa tradicao, Parnel saiu mais cedo para Les Cayes e eu pisquei-lhe o olho.

Mas tudo isto foi passado, foi A.T. Foi em Dezembro, la por alturas do Natal.

Parnel Beauvoir, o meu jornalista (e hoje deixo de lado qualquer modestia, abusando do pronome possessivo), morreu no dia 12. Estava a cortar o cabelo na barbearia de sempre, onde tambem iam os outros dois elementos masculinos da MINHA equipa. Se ao menos eu nao o tivesse o habito de os deixar sair tao cedo da redaccao...

Ah, o carregador nao se perdeu nas ruinas da sede da ONU. A Naomie, elemento feminino da equipa, apercebeu-se esta semana que tinha um carregador na carteira. La estava o autocolante resistente a guerra, com o nome: BEAUVOIR (Parnel). O Parnel bem sabia a equipa que tinha.

Rimos. O mundo pode cair mas ha coisas que nunca mudam. Ainda bem.










sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Mario Bazille (a unica foto que nao ficou enterrada nos escombros da sede Missao, tirada a partir do telemovel)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Jogador coxo

Uma figura de baixa estatura, com um andar ligeiramente cambaleante que lhe dava um certo estilo (na verdade, fruto de um problema de saude) e um sorriso permanente, acompanhado de duas covinhas nas bochechas. Nao havia como nao gostar dele.

Tinhamos encontro marcado todos os dias a horas certas: do meio-dia a uma e meia. De segunda a sexta. Os dois fechados num estudio. Confesso que odeio rotinas e obrigacoes regulares, mas neste caso, eu fechava ligeiramente o olho aos meus principios e era fiel aos nossos rendez-vous diarios.

Durante muito tempo, ele era uma personagem sempre sentada. Eu chegava atrasada ao estudio, ele ja sentadinho na cadeira, o melhor malabarista da mesa de mistura. Um dia, quando nos cruzamos no corredor, perguntei-lhe inocentemente: 'Mas o que tens na perna? Estas magoado? Estas a coxear? Foste ao medico?"
Se ao menos eu tivesse parado na primeira questao... Nao, tinha logo que enfiar 4 interrogacoes numa intervencao so. Resposta: "Na verdade, eu sou coxo desde muito pequenino. Tive uma doenca, ainda tentaram operar mas nao resultou. O meu sonho era ser jogador de futebol". (Mariana, hora de te esconderes no buraco.)
Apesar da perna, ele ainda nao estava convencido. Ha cerca de tres meses, entrou na equipa de futebol MINUSTAH FM. Antes disso, ja me tinha pedido o equipamento da seleccao portuguesa. Nao falhei. De ferias em Macau, comprei-lhe nao so a camisola dos tugas como ainda uma t-shirt do Super Homem.

A nossa relacao foi feita, entao, dentro de um espaco exiguo, repleto de colunas, microfones, botoes, auscultadores, telefones e vidros que nos separavam dos restantes estudios e mundos. Na primeira meia-hora, disputavamos os auscultadores. Entretanto, eu fazia os contactos telefonicos com os convidados e, quando eles respondiam com um mar de crioulo, era ele que me salvava: uma mao e uma orelha no telefone, outra mao e outra orelha na emissao e na mesa de mistura.
A meio do programa, ja nenhum de nos queria os auscultadores. Ja nao estavamos concentrados na emissao, atentos nas nossas conversas e confissoes. Ele era uma especie de diario, todos os dias lhe 'escrevia' as ultimas da minha vida haitiana.
Do outro lado, ele falava-me da namorada, muito jovem e inocente, da escola de linguas, da irma conflituosa, dos dois filhos que nao via ha anos (com a mae nos EUA), do sonho de ir aos States, da paixao pela radio, dos tempos em que tambem era DJ.

Ao longo do programa, ele comunicava por gestos estranhos com os jornalistas que estavam a fazer o directo. Uns gestos que ele dizia serem universais, mas que na verdade ninguem percebia. Mas todos faziam de conta que sim. Ele levava a radio demasiado a peito. Nao admitia falhas, nem atrasos na programacao, nem erros na linguagem, nem ma colocacao de voz, nem frases longas, ....
Era obcecado mas nao conseguia manter a postura seria por muito tempo. Derretia-se todo ao primeiro sorriso dos jornalistas.

Aqui que os auditores do Haiti nao nos ouvem, tenho que confessar uma coisa. Por vezes, ele fazia-se passar por um ouvinte e enviava mensagens para o nosso programa (Tous pour Haiti, um programa centrado em projectos de cooperacao/humanitarios). Era o Joel, de Carrefour. So o nome era mentira, ja que ele era orgulhoso do seu bairro.


Como nem sempre os nossos encontros diarios eram a dois, por vezes, quando a conversa era so nossa, falavamos em espanhol, para nao haver intromissoes. Tinha vivido an Republica Dominicana e agora estudava tambem na Universidade de Linguas de Port-au-Prince. Foi precisamente la que se encontrava no dia 12 de Janeiro. Mario Bazille nao escapou ao terramoto. Era o melhor tecnico da MINUSTAH FM, disputado e adorado por todas as equipas.
Ate hoje, ninguem aqui na redaccao improvisada conseguiu pronunciar o seu nome em voz alta. MARIO

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

domingo, 24 de janeiro de 2010

Uma especie de dia de folga...

Ontem, ao final do dia, o boss da radio decidiu dar o domingo aos novos jornalistas. Em muito contribuiram as minhas alegacoes de defesa. Num discurso que pecava por excesso, expliquei ao patrao (forma como o trato na presenca de todos, menos da dele) que os 20 jornalistas tinham vindo, um a um, pedir-me para irem a missa neste domingo, alguns mesmo chorando. Aqui que ninguem nos ouve (so le), confesso que so tres terao feito o pedido e nem um mostrou estar proximo das lagrimas. Um mentirinha inofensiva, com um final feliz: todos foram a missa e eu, finalmente, declarei unilateralmente a minha primeira folga desde o tal dia.
Ja dentro desse espirito, ontem ao final da tarde, resolvi ir jantar fora!! Eu sei, eu sei, uma ideia peregrina mas que encaixa no tal mundo de faz de conta em que vivemos aqui na Log. Na ambulancia ONU, fui percorrer as ruas de Petion-Ville, uma antiga zona burguesa, nos suburbios de PAP (versao francesa e curta de Porto Principe), que tinha, no periodo A.T. (Antes do Terramoto), a maior concentracao de restaurantes, ginasios e especie de bares. Agora, as duas principais pracas estao transformadas em acampamentos ainda sem direito a verdadeiras tendas. Barracas improvisadas feitas de paus e lencois dao um ar de mega coberta aos retalhos. Quando me preparava para regressar com a ambulancia a Log, o improvavel aconteceu: um restaurante aberto e um menu com mais do que tres linhas. Nem hesitei, atirei-me ao arroz nacional, banana frita e cabrito frito!E ainda pedi mais uma dose para levar na marmita para "casa". Com tanta actividade nocturna, a ambulancia (juro que nao fui eu) acabou por quebrar ligeiramente o recolher obrigatorio, agora fixado as 9 PM.
A noite de sabado (e a primeira vez que distingo os dias da semana, talvez por culpa da dita referencia as missas e consequente folga), foi dormida na ambulancia ONU. Foi a segunda noite consecutiva. Declaro, por isso, com todo o conhecimento de causa, que a ambulancia e o melhor veiculo da Missao para dormir. Mas, o (relativo) conforto para dormir, provoca um novo efeito: sonhar. Faz parte do pacote, presumo. Assim, pela primeira vez, dormi e vivi uma historia a querer tocar o real. Estava com um deles, primeiro surpreendida por ve-lo com vida, depois euforica, apesar da morte dos outros do The Club. Enfim, depois acordei de novo para a realidade. Aquela que ainda ninguem quer aceitar.
Hoje, Domingo, seria a tal suposta folga. Engano. Madrugar (5.40 AM), pegar na camara fotografica, carro para Cite Solei (a area mais pobre de PAP, considerada pela ONU em 2004 como "a zona mais periogosa do mundo", controlada entao pelos gangs), fotografar uma distribuicao de comida a cerca de 5 mil pessoas, entrevistar populacao no meu crioulo de marca pessoal (so eu entendo), regressar a Log, pequeno-almoco, saida na ambulancia para acompanhar uns pediatras a antiga sede da ONU, paragem no predio completamente derrubado de uma das sobreviventes do The Club, procurar pertences nos escombros, encontrar roupa interior, oculos de sol, malas (tudo, menos o que se procurava), assistir a remocao de dois corpos que estavam nos escombros, voltar a sede ONU, voltar a ver os corpos que foram transportados na "minha" ambulancia, pegar nos pediatras, num recem-nascido e respectiva mae, deslocar ao hospital de campanha junto ao aeroporto, regressar a LOg, almocar (as 5 PM), voltar a sair para ir a minha (sobrevivente) casa, tomar banho, regressar a LOg.... Como se percebe, a extensao da frase (recorde pessoal) e directamente proporcional a duracao do dia e respectivo programa de actividades.
O transporte dos dois corpos na minha "ambulancia-quarto-cama", fez-me concluir de imediato que teria, mais uma vez, de procurar '"casa" nova. Tive a certeza de que nao conseguiria voltar a dormir no mesmo local. Pelo facto de ter assistido a remocao dos cadaveres dos escombros. Pelo facto de ter sentido (e ainda sentir) o odor.
No entanto, reaprendi ha cerca de duas semana que tudo e relativo e que as mais fortes conviccoes podem ter data de expiracao muita curta. Ou seja, esta noite, la estarei eu na minha "ambulancia-quarto-cama", eleito o melhor veiculo 2010 da ONU. So ainda nao sei se quero que os sonhos se (me) aproximem mais da realidade.

P.S. Parece que vamos ser obrigados a sair duas semanas do Haiti. Cura de stress, dizem.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010
























E nao e que a radio caiu do ceu?
Primeiro, as movimentacoes nas antenas (sera esta foto "trabalhar as antenas"?), duas horas depois a chegada dos estudios!! O primeiro chegou por terra, o segundo veio (vi-o) do ceu. Que parelha!
Os dois estudios de producao estavam na anterior sede, mas sobreviveram. Chegaram hoje a nossa nova radio, para onde fomos evacuados ontem, depois do anterior "acampamento" radiofonico ter sido declarado local-cheio-de-rachas-a-abandonar-urgentemente. Tudo isto parece confuso, e e. (os acentos ficaram no meu antigo teclado, enviado pela Estelinha de proposito para o Haiti. Esta algures na sede da ONU). A equipa da radio foi, entao, desterrada para o fim da Log (Base). Estamos num dos extremos, junto ao acampamento dos capacetes azuis da Jordania. Hoje ja foi feita uma cronometragem: de um extremo ao outro da Log sao precisos cerca de 15 minutos! Pormenor sem importancia, nao fosse estarmos longe da Avenida principal, onde desfilam ONG's, Agencias ONU, Presidentes e Ministros, jornalistas,,, e do local onde apanhamos a carreira da ONU para ir a caca (tenho de deixar de usar esta palavra) da noticia.
Voltando a radiofonia, ja estao a caminho mais dois contentores-estudios. Sim, eu sei, nao ha fome sem...
A isto junte-se a cabana-redaccao onde estamos agora instalados, e arriscamo-nos a ser uma especie de RFI ou BBC ca das Caraibas. Bem, os recursos humanos e que ainda nao sao directamente proporcionais aos meios tecnicos. Pormenores.
Neste momento, sou responsavel por 14 dos tal vinte jornalistas (ou primos afastados de jornalistas) contratados a pressao. Tenho tentado, o mais rapidamente possivel, perceber os pontos fortes de cada um. Mas, estou um pouco desorganizada: nao me lembro do nome de ninguem, dou funcoes trocadas a todos eles, chamo o nome errado, enfim, ainda pensei pedir-lhes para usarem um papel com um nome ao peito (como alias os psico e psiquiatras fazem aqui na Log- andam com um papel ao peito a anunciar que sao psi qualquer coisa, como se alguem os fosse chamar e pedir ajuda no meio da Avenida principal da Log. Pode andar tudo com o trauma, mas interpelar o psico no meio da rua com todos a verem, isso e que nao!!!).
O algum senso que me vai restando, fez-me nao pedir aos jornalistas para usarem o tal papel, mas obrigou-me a criar 3 mil tecnicas para interpela-los e conseguir que digam constantemente o seu proprio nome, assim como se fosse algo natural. (exemplos: "Madame Mariana, eu, Marie Antoine, vou entao sair em reportagem ao tal sitio?"; "E eu, Antoine Joachim, posso ficar hoje com as breves?")
Todos eles, apesar da tal falta de parentesco com as noticias, estao com uma vontade forte de trabalhar. Alguns sem dinheiro no bolso (enterrado nos escombros e os bancos so abrem amanha pela primeira vez), oferecem-se para percorrer 3 pontos de reportagem, mesmo que sejam em lados extremos da cidade, em zonas agora a saque. Querem mostrar trabalho, aprender, assegurar que daqui a tres meses o contrato e renovado. E bonito de ver, mas aperta saber as historias que ajudam a explicar tanta entrega.
A devocao tem, no entanto, alguns limites. Menos uma semana de trabalho na MINUSTAH e ja comecaram as reinvidicacoes. Individualmente ou em pequenos grupos, vieram-me perguntar se tinham que trabalhar Domingo. La expliquei que iriamos definir turnos mas pedi compreensao para este domingo, depois de amanha. Nao convenci. Demorei a perceber o que estava em causa: querem ir a missa (obvio Mari). A Cristina (a minha sobrevivente), teve porem uma resposta seca e pratica (de quem esteve dois dias enterrada em escombros): "Mas que missa, se todas as igrejas ruiram?"
Hoje, despedimo-nos no aeroporto de mais uma amiga da Missao que nao escapou ao tremer da terra. Agora, quase todos os dias, despedimo-nos de alguem. Sao os unicos momentos e minutos que chocamos de frente com a realidade. Todo o resto do dia, andamos distraidos a trabalhar, a fazer de conta que nao e assim tao serio, a dormir pouco para nem sequer dar hipotese aos sonhos. E quando se sai para o terreno? Para o centro da cidade? Veste-se a capa de jornalista, assenta bem e e (quase) impermeavel. Quase.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

On Air

A nossa radio esta no ar desde segunda feira! Os estudios e todo o equipamento ficaram na antiga sede, na parte sobrevivente. Mas, mesmo sem eles, o carolas ca do sitio conseguiu transformar um escritorio (roubado ao dono do sofa) numa coisa parecida com um estudio. Depois andou a trabalhar nas antenas (seja la o que isso for) et voila! MINUSTAH FM!
Entretanto, chegaram tambem alguns tecnicos da Radio France International para trabalharem as antenas (?) , de forma a sermos ouvidos mais do que em Porto Principe e arredores.
Tudo perfeito, menos um "pequeno" pormenor: nao havia jornalistas (uns estao feridos, outro desparecido, outros viajaram para fora do pais). Num acesso de loucura nao burocratica e nada propria da ONU, foi-nos dada autorizacao para contratarmos 25 jornalistas de urgencia. Nessa altura do campeonato (dia 6 D.T. ou D.S.), a equipa da radio estava reduzida a 3 pessoaas (eu e mais dois produtores tambem estrangeiros) e o patrao estava fora. Tal o descontrolo (e a pressao da ONU em estabelecer uma radio de natureza humanitaria), que os novos jornalistas foram contratados de forma original. Um desses colegas deslocou-se numa tarde a todos as sedes das radios da capital, completamente destruidas, onde encontrou alguns jornalistas a porta, talvez a espera que um novo emprego caisse do ceu. E nao e que caiu?
No dia seguinte, deveriam aparecer aqui na Log cerca de 11 jornalitas. Conclusao: chegaram 21! Da-me a ideia que alguns sao irmaos e primos, porem, sem nenhum parentesco com o jornalismo. Ao longo do dia de ontem (terca, 1 semana D.T.), foram chegando mais e mais jornalistas a pedirem emprego. Vinham falar comigo, a implorar, a contar o pesadelo que estao a viver, a apelar a minha bondade. Eu, maos atadas, coracao espremido. Os contratos ja estavam formulados e a burocracia e inflexibilidade sao rainhas nesta Casa, o recrutamento foi de facto a excepcao a regra.

La fora ainda e pior. Foi criada uma barreira de seguranca a uns 200 metros da Log (Base) para empedir a multidao de haitianos de invadirem a base. Vem a procura de emprego, qualquer que seja. Alguns ainda tem marcas do terramoto, fisicas, claro, pois as psico todos tem.

Os vinte comecaram ontem e no inicio foi o susto. Exemplo de um falso directo: "em Champs de Mars, esta muita gente, mulheres sem bracos e sem pes, criancas sem bracos, muitos feridos de outro tipo, nao tem comer, nao tem agua. Voces deviam ver o que eu estou a ver. Mas eu sou os vossos olhos, estou aqui para informar e reinformar e voltar a informar. E uma tragedia muito grande"
(nota: este exemplo nao e uma piada. ipsis verbis)

Enfim, parece-me que vou ter muito trabalho pela frente. Falo na primeira pessoa porque os outros dois produtores estao a tomar conta da animacao e da equipa de news, composta por alguns dos nossos anteriores jornalistas que resolveram voltar. E um regresso ao trabalho com um bonus extra: podem assim ficar a dormir na Log (carro, caminha militar ou erva), em vez de dormirem nas grandes pracas da cidade, acotovelados por centenas de outros vizinhos.
A rapaziada contratada a pressao, parece ser boa malta. Chamam-me de Madame Mariana e Vous ...quelque chose... Ah pois e!!! Bem, tambem e verdade que um deles ofereceu-me uma cadeira, com a justificacao: 'fica com ela, eu nao preciso, sou jovem e fresco'
%&&*****!!!!!
Cristina e uma das mais novinhas do grupo. Esteve dois dias debaixo dos escombros da universidade onde estudava. Ao seu lado, os corpos das melhores amigas. No regresso a casa, a noticia que o irmao mais novo esta desaparecido e que a casa esta feita em po. Apesar de nao ter nenhum documento que a identifique, conseguimos convencer a Missao a contrata-la. Deve ser um caso raro na historia da organizacao, mais uma excepcao a burocracia.
Ela tambem aproveita o pacote completo: para alem de trabalhar, vem dormir aqui, esta cansada de estar na rua, e mais importante, pode comer, coisa rara estes dias ate nas melhores familias.
Hoje, enquanto me observava, disse: "tens que descansar e dormir, estas com um ar cansado... coragem!" Sem palavras. Como nao admirar o Haiti?

A noite passada foi pior que fecho de jornal, uma agitacao.
Primeiro a incognita de nao saber que carro vai calhar na rifa (espero que seja o bus, por favor o bus). Depois abrir uma carrinha de 9 lugares e o alarme comecar a tocar (fuga imediata). Finalmente alguem viu o ar de refugiadas das Marianas (eu e a amiga brasileira, companheira das noites sem dormir) e ofereceu-nos um carro. As 5 da manha, fomos acordadas porque alguem tinha que viajar para a Republica Dominicana com a viatura. Proximo destino: o primeiro autocarro que vimos pela frente, ocupado por uns corpos que ressonavam. As seis, nova agitacao. Um desses corpos deu um salto do banco de tras (esperto, ficou no melhor 'spot') e berrava algo. Mal me levantei. So o ouvia a dizer que o bus mexia, mexia. De facto, parecia que sim, mas o sono era tanto que preferi pensar que nao. So sai para a rua, porque fui empurrada pelo tal ressonas. Resolvi nao perder tempo a procura de opcoes para dormir, deitei-me no primeiro chao macio que encontrei.
Duas horas depois, acordada pelas formigas e pelo calor, fiquei a saber que afinal tinha havida mais um terramoto, desta vez 6.1. Fraquinho, muito fraquinho.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Uma semana depois...

Desde a chegada a Log (Logistic Base, a tal que se transformou na actual sede da Missao e de todas as Agencias da ONU) , que andam todos perdidos nos dias das semanas. O calendario transformou-se em dia 1, dia 2 (e por ai adiante) e foram apagados os dias da semana. Hoje, porem, impossivel nao saber: terca-feira, precisamente uma semana depois da terra ter fugido dos pes ( dia 7 ou 8? Eu acho que o dia 0 devia contar como 1) . Para ser mais precisa, as 16.53. Ainda nao tinha parado muito tempo para pensar na hora, mas houve algumas personagens que dedicaram-lhe muitos pensamentos e teorias. Foi assim que fiquei a saber que tinha muita sorte pois por volta das 5 (disseram-me) eu costumava ir fumar (na maezinha, nao fumo) para a varanda central da sede (que caiu com o resto do edificio). Mas nao foi so uma personagem a informar-me do meu horario de fumo. Depois da segunda, resolvi partilhar a conversa com a minha companheira de fumaca. E nao e que ela me informou que tb o nosso chefe-mor comentou a nossa sorte pelo facto de nesse dia nos termos atrasado no vicio? (desconfio que foi mais adiantar). Pasmada com esta constatacao! Nao pela varanda, mas , como e que possivel que toda a unidade saiba que vamos fumar la pelas 4.30/5? E nos, que ate disfarcamos, saimos separadamente, com o vicio enfiado no bolso. Que precisao!! Estamos rodeadas de espioes, e agora estamos aqui !

Uma semana e dificil de engolir. Todos percebemos que muito provavelmente o numero actual de desaparecidos ONU vai transformar-se numa outra estatistica. Nao ajudou tambem o minuto de silencio marcado hoje (nas tais 16 horas e53) e, mais tarde, a cerimonia de homenagem a 17 militares brasileiros (dois deles amigos proximos, com quem planeava churrasco para o passado domingo). E ainda falta a cerimonia de homenagem aos civis e a confirmacao de mais uns nomes retirados dos escombros. Os meus, aqueles que compunham o meu Haiti para cima e para baixo, The Club como eu nos chamava, ja fazem parte da pior das estatitiscas.

Foi imposta a Lei Seca na Log (Base). Os dois cafes (entretanto reabertos a 1/4 de gas) estao proibidos de vender alcool, o mesmo se passa no supermercado. Conselhos dos psico e psiqui ca do sitio. Oh, mas nem adiantou. Ao segundo dia (ou melhor, dia2), ja havia contrabando. Ha bebidas alcoolicas variadas e uma solidariedade na hora de saborea-las. Ontem a noite, numa das esquinas dos contentores, houve cocktail de bebidas, risos, e muito, muito choro. Falamos deles, de nos, do Haiti, do dia 0 (ou 1) e dos esforcos que foram feitos para salvar algumas vidas. "Na minha cabeca ainda tenho a imagem do nosso condutor, arrastado por mim para fora dos escombros, que mal escapou da morte, imeadiatamente se levantou com as calcas pelos tornozelos, e de pronto (e com tudo a mostra) exclamou: 'merci monsieur directeur'!" O director da historia (contada com imitacao corporal perfeita), fe-lo entre risos no meio de muita dor (soube umas horas antes que a mulher, minha colega, tinha sido encontrada sem vida) . Quando voltamos aos aposentos (carros, tendas, caminhas de militares e afins), ja nao iamos nada firmes mas seguros que foi das melhores festas que lhes (nos) podiamos oferecer.

Ando ha dias para ir ao supermercado da Log mas receio. Ja tentei enviar alguem em meu nome, ou ir disfarcada para que nao me reconhecam. Pq? Cheira-me que nao me vao deixar entrar. No tal dia 0 (1), as tantas da madrugada, logo apos a evacuacao, fiz umas das minhas cenas de veias no pescoco (qualquer coisa parecida com a cena do sofa). Por aquilo que (vagamente) me recordo insultei o dono e a loja e os empregados (e talvez os proprios produtos) com todas as formulas possiveis do mal-dizer (mas com toda razao do meu lado, naturalmente). Ora bolas, a culpa e das veias, acho. Pois minha nao e de certeza : )

PS Nas ruas a situacao e muito dura, claro, mas nao e totalmente fiel as noticias que se tem escrito. Sim, e uma crise humanitaria. Nao, ainda nao e uma crise de inseguranca e de poder largado nas ruas. Num outro dia, falarei menos de mim e mais do pais. Mas nao hoje. Hoje e o meu dia 7(8).




































segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

domingo, 17 de janeiro de 2010

Dia 5

Altos e baixos. Foi assim o dia 5.
Desde que fomos deslocados para a base logistica da missao, a minha seccao (Informacao Publica: radio, website, publicacoes) foi instalada num escritorio improvisado: ocupamos desde entao o antigo contentor da unidade CISS/DCISS (sim, eu sei, e imperceptivel, de qualquer forma, acho que nem os proprios q dirigem tais siglas sabem o que elas significam). Foi aqui que comecamos a tentar montar a nossa radio (perdeu o sinal de transmissao com o sismo), aqui comecamos a editar e a enviar as imagens para os colegas video de NY, aqui fomos escrevendo os artigos e colocando as fotos online. Em horario nocturno, o contentor tem servido tambem de acampamento (caminhas de militares, para acompanhar a respectiva racao diaria)
(nota: ja perceberam que ha um defice de acentos neste computador). Eu e mais carros, confesso. Desde o primeiro dia de sono, que sou fa das viaturas ONU. Os carros da ONU estacionados na base estao com as portas abertas durante a noite, so temos que escolher a matricula, ja que a marca e toda igual. Bem, minto. Na verdade, logo na primeira noite fui a caca (dava jeito a cedilha) de um veiculo com a outra Mariana (brasileira, jornalista) e saiu-nos a noite grande: uma carrinha de nove lugares, so para as duas Maris. Noite seguinte, voltamos ao spot. No meio do acampamento de veiculos, voltamos a encontrar a nossa 'UN van". Agora, avancamos na escala dos veiculos: desde ontem que dormimos no autocarro UN. Vinto e picos lugares so para as meninas... bem, lua de pouca dura. Acordei com os roncos de outros dois colegas e com o radio de comunicaoes nas alturas (durante a noite as comunicaos sao constantes, sobretudo entre os elementos da seguranca e as equipas de resgates).
Nada disto e importante, eu sei. Mas e talvez a forma de distrair a mente, de ir fazendo de conta que nada esta a acontecer. No entanto, ao mesmo tempo, todos aqui, sem excepcao, passam(os) horas a falar de terca feira, das quase 5 da tarde, de onde estavamos, como foi, o que sentimos ... Acho que ja todos sabemos todas as historias de cor, mas continuamos a fazer de conta que foi ontem e que ninguem sabe o que nos passou.
Altos e baixos, disse.
De manha conseguimos aquilo que andamos a tentar desde ha 3, 4 dias: conseguimos por a radio no ar. Foi uma alegria exagerada... ou talvez nao. Afinal, so 3 radios continuam a emitir na capital (existiam umas duas dezenas) e e o unico meio de comunicacao no pais. (algumas televisoes ate nao foram afectadas, mas nao ha electricidade e jornais estao sem impressao). Agora, podemos finalmente chegar a populacao: dizer onde buscar comida e agua, dizer qual o hospital de campanha mais proximo, dizer onde estao os familiares perdidos, simplesmente dizer... ja que ate agora ninguem disse nada.
A minha funcao hoje era seguir o Secretario Geral (SG) da ONU durante a visita relampago que fez a PAP (formula relampago que aprendi a atraves da emissao de cheques). Sabia que ia ser um teste: estava planeada uma visita as operacoes de resgate na sede da Missao, onde nunca mais voltei, e uma cerimonia de homenagem a duas vitimas muito especiais.
Faco aqui um parenteses para dizer que nao me apetece tocar na dor, ou chocar de frente com emocoes proprias ou alheias. Pelo menos nao aqui.
Passei entao pelo Christopher (o nome do antigo hotel que nos dava sede), revi alguns colegas (militares e segurancas envolvidos nos esforcos), fui sendo atropelada (e atropelei) pelos jornalistas que corriam(os) atras dos 15 segundos de som do SG. Confesso que mesmo 15 segundos ja foi pedir demais. (oops)
A segunda paragem da comitiva, composta por umas personagens vindas de Nova Iorque, dos melhores media da praca, foi em Champ de Mars. A grande praca onde se concentram os edificios do governo e o Palacio Nacional, que um dia ja rivalizou com a Casa Branca. Desde terca feira que o edificio esta partido ao meio. La dentro, talvez alguns ministros e senadores.
A praca esta transformada no maior campo de desalojados da capital. E nao, nao e verdade: a cidade nao esta a saque, as armas e as catanas nao estao a solta, a American Airlines nao esta a dar bilhetes de graca (ui, logo eles!!), ... Mas sim, ha casos de agitacao e alguma violencia, sobretudo quando helicoptero da F. Aerea Americana decide lancar (poucos) caixotes de comida para cima de um campo de desalojados, ou quando ha alguns biscoitos distribuidos que so tem a data de producao ou quando, e verdade, alguem rouba algo e acaba (acabou) por ser arrastado pelas ruas e atirado vivo para o fogo. Nao e rumor, ha imagens. Alias, nem eram precisas. Os linchamentos eram noticia frequente no Haiti, mas raramente na capital.
O programa da visita do SG incluiu ainda a conferencia de imprensa e o discurso ao pessoal da ONU (juro-vos que mesmo juntando os dois eventos seria dificil obter os tais 15 seg de som.-oops again!).
Por fim, a despedida as duas pessoas mais especiais da missao. Nem sei o que escrever aqui. Fiz o que tinha a fazer: liguei o gravador, gravei a cerimonia e, confesso, choramos.
O final do dia foi passado a ligar para os 10 novos jornalistas haitianos para a radio, contratados a pressao. Para ser mais precisa, esta tarde mesmo. (0s nossos vao para ja ficar em casa, a curar as feridas, a procurar sobreviventes, uma casa nova, um alento novo). Ainda nao conheco os novos mas ja gosto. Alguns despediram-se ao telefone com um "courage", como se a nossa dor ou perda fosse maior do que a deles. Nao e. Nem me atrevia a pensar assim.

Para terminar o dia em beleza, um belo combate de insultos e gritaria no nosso contentor (confesso que por vezes tenho um certo gosto por estas batalhas verbais, a rocar o fisico). O tal chefe das siglas estranhas (CISS/DCISS) chegou ontem de Nova Iorque e nao gostou de nos ver acampados na sua quinta (ele e seus capangas) (acho que ainda nao viram a tv). Hoje resolveu colocar no seu escritorio os dois sofas que estavam na rua e que tem servido de cama a dois colegas, uma delas gravida. Ela mesma, foi pedir-lhe para, pelo menos durante a noite, ceder-lhe o dito sofa. Resposta: "o sofa e meu, do meu escritorio, voces e que estao a ocupar o meu espaco". Depois disto, deixo a vossa imaginacao. Para quem me conhece, so posso dizer que estive no meu mellhor: com aquelas veiazinhas vermelhas a salterem-me do pescoco!! Oh que gosto me deu! Foi de tudo! E que bela sensacao de nao ter medo de nada e de nao ter nada a perder! O pior que podia acontecer ja aconteceu... ha 5 dias. Tudo o resto sao peanuts.

Nota: Acho que tambem deviam ficar indignados, o sofa e o escritorio do chefe das siglas esquisitas tambem e vosso (nosso)! Afinal, todos os anos contribuimos com uma percentagem para o orcamento da ONU. Temos todos direito ao sofa! Bora la?