domingo, 24 de janeiro de 2010

Uma especie de dia de folga...

Ontem, ao final do dia, o boss da radio decidiu dar o domingo aos novos jornalistas. Em muito contribuiram as minhas alegacoes de defesa. Num discurso que pecava por excesso, expliquei ao patrao (forma como o trato na presenca de todos, menos da dele) que os 20 jornalistas tinham vindo, um a um, pedir-me para irem a missa neste domingo, alguns mesmo chorando. Aqui que ninguem nos ouve (so le), confesso que so tres terao feito o pedido e nem um mostrou estar proximo das lagrimas. Um mentirinha inofensiva, com um final feliz: todos foram a missa e eu, finalmente, declarei unilateralmente a minha primeira folga desde o tal dia.
Ja dentro desse espirito, ontem ao final da tarde, resolvi ir jantar fora!! Eu sei, eu sei, uma ideia peregrina mas que encaixa no tal mundo de faz de conta em que vivemos aqui na Log. Na ambulancia ONU, fui percorrer as ruas de Petion-Ville, uma antiga zona burguesa, nos suburbios de PAP (versao francesa e curta de Porto Principe), que tinha, no periodo A.T. (Antes do Terramoto), a maior concentracao de restaurantes, ginasios e especie de bares. Agora, as duas principais pracas estao transformadas em acampamentos ainda sem direito a verdadeiras tendas. Barracas improvisadas feitas de paus e lencois dao um ar de mega coberta aos retalhos. Quando me preparava para regressar com a ambulancia a Log, o improvavel aconteceu: um restaurante aberto e um menu com mais do que tres linhas. Nem hesitei, atirei-me ao arroz nacional, banana frita e cabrito frito!E ainda pedi mais uma dose para levar na marmita para "casa". Com tanta actividade nocturna, a ambulancia (juro que nao fui eu) acabou por quebrar ligeiramente o recolher obrigatorio, agora fixado as 9 PM.
A noite de sabado (e a primeira vez que distingo os dias da semana, talvez por culpa da dita referencia as missas e consequente folga), foi dormida na ambulancia ONU. Foi a segunda noite consecutiva. Declaro, por isso, com todo o conhecimento de causa, que a ambulancia e o melhor veiculo da Missao para dormir. Mas, o (relativo) conforto para dormir, provoca um novo efeito: sonhar. Faz parte do pacote, presumo. Assim, pela primeira vez, dormi e vivi uma historia a querer tocar o real. Estava com um deles, primeiro surpreendida por ve-lo com vida, depois euforica, apesar da morte dos outros do The Club. Enfim, depois acordei de novo para a realidade. Aquela que ainda ninguem quer aceitar.
Hoje, Domingo, seria a tal suposta folga. Engano. Madrugar (5.40 AM), pegar na camara fotografica, carro para Cite Solei (a area mais pobre de PAP, considerada pela ONU em 2004 como "a zona mais periogosa do mundo", controlada entao pelos gangs), fotografar uma distribuicao de comida a cerca de 5 mil pessoas, entrevistar populacao no meu crioulo de marca pessoal (so eu entendo), regressar a Log, pequeno-almoco, saida na ambulancia para acompanhar uns pediatras a antiga sede da ONU, paragem no predio completamente derrubado de uma das sobreviventes do The Club, procurar pertences nos escombros, encontrar roupa interior, oculos de sol, malas (tudo, menos o que se procurava), assistir a remocao de dois corpos que estavam nos escombros, voltar a sede ONU, voltar a ver os corpos que foram transportados na "minha" ambulancia, pegar nos pediatras, num recem-nascido e respectiva mae, deslocar ao hospital de campanha junto ao aeroporto, regressar a LOg, almocar (as 5 PM), voltar a sair para ir a minha (sobrevivente) casa, tomar banho, regressar a LOg.... Como se percebe, a extensao da frase (recorde pessoal) e directamente proporcional a duracao do dia e respectivo programa de actividades.
O transporte dos dois corpos na minha "ambulancia-quarto-cama", fez-me concluir de imediato que teria, mais uma vez, de procurar '"casa" nova. Tive a certeza de que nao conseguiria voltar a dormir no mesmo local. Pelo facto de ter assistido a remocao dos cadaveres dos escombros. Pelo facto de ter sentido (e ainda sentir) o odor.
No entanto, reaprendi ha cerca de duas semana que tudo e relativo e que as mais fortes conviccoes podem ter data de expiracao muita curta. Ou seja, esta noite, la estarei eu na minha "ambulancia-quarto-cama", eleito o melhor veiculo 2010 da ONU. So ainda nao sei se quero que os sonhos se (me) aproximem mais da realidade.

P.S. Parece que vamos ser obrigados a sair duas semanas do Haiti. Cura de stress, dizem.

6 comentários:

  1. Isso de ir jantar fora e não convidar o pessoal é feio!!!

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  2. Mariana
    Aproveita essas duas semanas bem. Recarrega as pilhas, descomprime e, tenta não pensar muito.
    Beijinhos
    Maria Águeda

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  3. Força amiga! só posso imaginar (à escala e com todas as diferenças, interínsecas e- mas - não só!). Quando sai de Puket (a 8 de Janeiro, senti um nó na garganta de sentimento de culpa (entre uma mol de outros).
    Muita coragem, muita escrita para 'desopilar' e um bj grande,
    Alf

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  4. Mariana, estamos sempre a acompanhar-te, de longe, mas ao mesmo tempo de perto porque estamos sempre contigo. Ouvimos-te hoje no directo da SIC e também á tua mãe. "Estelinha", é um termo que me é familiar, também é assim que muitas vezes chamo à minha mãe. É bom ouvir a tua voz.
    Olha tenho aqui um "chato" de 9 anos, o Tiago, que diz que te quer escrever. Vou passar-lhe o teclado(o meu com acentos) se não vai ficar aqui a melgar-me.
    Mariana quero-te dizer que és muito corajosa, eu sou escuteiro mas não tenho a tua coragem, acho. Também és muito bonita. ajuda os meninos e meninas que puderes e todos também. Beijinhos do Tiago
    Ok Madame, O Tiago é muito selectivo, e para dizer que és muito bonita, é porque o acha mesmo. E és mesmo minha querida, és muito bonita, por fora e por dentro. Um grande beijo e força.

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  5. E todo o mundo deveria saber dessa tua estrela! E muitos lerem o lugar este onde escreves, uma outra visão de quem está aí, para ajudar e não para ser mostrada. Um abraço Mariana

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