sábado, 30 de janeiro de 2010

Uma ex-(quase)desilusao







Foi como um soco no estomago, daqueles que doem mesmo, quando os abdominais estao completamente distraidos. Numa altura de crise, nao esperava que ele, Parnel Beauvoir, o elemento mais velho da minha equipa, anunciasse a frente de todos os jornalistas que iria de ferias, quando, na verdade, eu ja lhe tinha dito que nao poderia faze-lo nessa altura.

Ok, e so um pormenor de administrativo, uma questao laboral, uma infeliz planificacao...
Talvez. Mas nao nestas circunstancias. E nao com o Parnel. Ele, o mais velho dos cinco da equipa. Ele, o antigo director de uma escola em Les Cayes (cidade do sul do Haiti). Ele, que saia todas as sextas a uma da tarde para regressar a cidade natal (eu fechava o olho ao cumprimento do horario de trabalho e piscava-lhe o outro, desejando-lhe bom f-d-s). Como podia nao deixa-lo sair mais cedo?Em Les Cayes, tinha a mulher, tres filhos (o quarto morreu em Agosto passado, poucas horas depois de nascer), um sobrinho orfao, e umas outras 3 criancas que, no Haiti, sao conhecidas por 'restavek' (rester avec). A domesticidade infantil afecta mais de 200 mil criancas no pais. Escravatura moderna tambem lhe chamam. Nao para o Parnel. Sempre jurou a pes juntos que na sua casa, todas as criancas, as suas e as dos outros, tinham as mesmas tarefas e todos iam a escola. Nao tenho a menor duvida.

Voltando ao soco, como foi possivel nao respeitar o que lhe tinha dito? E a frente de todos os outros?

Ele, a quem eu recorria para dar licoes de moral aos restantes quatro (quando eu sozinha nao dava conta do recado). Ele, o mais respeitado por todos; ele que nunca se zangava a nao ser quando o seu carregador do telemovel desaparecia (mas que ele insistia em deixa-lo na redaccao, quando sabia tratar-se de um objecto muito apetecivel, sobretudo no seio de uma equipa pouco organizada e muito esquecida). Ele, que me foi esperar a entrada de Les Cayes, na primeira vez que conduzi o Pisca-Pisca (o meu carro-quase-jipe) para fora da capital. Ele, que me recebeu a mim e aos meus co-pilotos com bebidas e que, as escondidas, pagou a um haitiano para tomar conta do meu Pisca-Pisca e dar-lhe uma ensaboadela.

Ele, que se lamentava sempre que eu me ausentava do pais (bem, nao sei se era por minha causa, talvez fosse por saber que a minha substituta lidera com chicote).

A questao, das ditas ferias, foi resolvida com uma reuniao extraordinaria. Pela primeira vez, coloquei o fato de supervisora, juntei os 5 e anunciei que, a partir desse dia, estavam extintos os metodos da Mari, tambem conhecidos por regras-com-excesso-de-flexibilidade. Entravam em vigor as regras ONU.
Parnel, mais uma vez falou por todos, e por si. Com a calma e a sabedoria de sempre. Aquele que parecia um ponto de ruptura com a equipa, nao foi mais do que um dia nublado. Parnel acabou por decidir nao ir de ferias, eu acabei por recuperar as regras-com-excesso-de-flexibilidade. Na sexta feira seguinte, como era nossa tradicao, Parnel saiu mais cedo para Les Cayes e eu pisquei-lhe o olho.

Mas tudo isto foi passado, foi A.T. Foi em Dezembro, la por alturas do Natal.

Parnel Beauvoir, o meu jornalista (e hoje deixo de lado qualquer modestia, abusando do pronome possessivo), morreu no dia 12. Estava a cortar o cabelo na barbearia de sempre, onde tambem iam os outros dois elementos masculinos da MINHA equipa. Se ao menos eu nao o tivesse o habito de os deixar sair tao cedo da redaccao...

Ah, o carregador nao se perdeu nas ruinas da sede da ONU. A Naomie, elemento feminino da equipa, apercebeu-se esta semana que tinha um carregador na carteira. La estava o autocolante resistente a guerra, com o nome: BEAUVOIR (Parnel). O Parnel bem sabia a equipa que tinha.

Rimos. O mundo pode cair mas ha coisas que nunca mudam. Ainda bem.










2 comentários:

  1. Mariana, vejo pelos teus escritos, que a realidade começa a desabar sobre ti. No entanto, é muito bom que escrevas sobre a mesma, isso significa que as estás a enfrentar, mesmo com com as dores que possas ter. Um grande beijo

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