domingo, 17 de janeiro de 2010

Dia 5

Altos e baixos. Foi assim o dia 5.
Desde que fomos deslocados para a base logistica da missao, a minha seccao (Informacao Publica: radio, website, publicacoes) foi instalada num escritorio improvisado: ocupamos desde entao o antigo contentor da unidade CISS/DCISS (sim, eu sei, e imperceptivel, de qualquer forma, acho que nem os proprios q dirigem tais siglas sabem o que elas significam). Foi aqui que comecamos a tentar montar a nossa radio (perdeu o sinal de transmissao com o sismo), aqui comecamos a editar e a enviar as imagens para os colegas video de NY, aqui fomos escrevendo os artigos e colocando as fotos online. Em horario nocturno, o contentor tem servido tambem de acampamento (caminhas de militares, para acompanhar a respectiva racao diaria)
(nota: ja perceberam que ha um defice de acentos neste computador). Eu e mais carros, confesso. Desde o primeiro dia de sono, que sou fa das viaturas ONU. Os carros da ONU estacionados na base estao com as portas abertas durante a noite, so temos que escolher a matricula, ja que a marca e toda igual. Bem, minto. Na verdade, logo na primeira noite fui a caca (dava jeito a cedilha) de um veiculo com a outra Mariana (brasileira, jornalista) e saiu-nos a noite grande: uma carrinha de nove lugares, so para as duas Maris. Noite seguinte, voltamos ao spot. No meio do acampamento de veiculos, voltamos a encontrar a nossa 'UN van". Agora, avancamos na escala dos veiculos: desde ontem que dormimos no autocarro UN. Vinto e picos lugares so para as meninas... bem, lua de pouca dura. Acordei com os roncos de outros dois colegas e com o radio de comunicaoes nas alturas (durante a noite as comunicaos sao constantes, sobretudo entre os elementos da seguranca e as equipas de resgates).
Nada disto e importante, eu sei. Mas e talvez a forma de distrair a mente, de ir fazendo de conta que nada esta a acontecer. No entanto, ao mesmo tempo, todos aqui, sem excepcao, passam(os) horas a falar de terca feira, das quase 5 da tarde, de onde estavamos, como foi, o que sentimos ... Acho que ja todos sabemos todas as historias de cor, mas continuamos a fazer de conta que foi ontem e que ninguem sabe o que nos passou.
Altos e baixos, disse.
De manha conseguimos aquilo que andamos a tentar desde ha 3, 4 dias: conseguimos por a radio no ar. Foi uma alegria exagerada... ou talvez nao. Afinal, so 3 radios continuam a emitir na capital (existiam umas duas dezenas) e e o unico meio de comunicacao no pais. (algumas televisoes ate nao foram afectadas, mas nao ha electricidade e jornais estao sem impressao). Agora, podemos finalmente chegar a populacao: dizer onde buscar comida e agua, dizer qual o hospital de campanha mais proximo, dizer onde estao os familiares perdidos, simplesmente dizer... ja que ate agora ninguem disse nada.
A minha funcao hoje era seguir o Secretario Geral (SG) da ONU durante a visita relampago que fez a PAP (formula relampago que aprendi a atraves da emissao de cheques). Sabia que ia ser um teste: estava planeada uma visita as operacoes de resgate na sede da Missao, onde nunca mais voltei, e uma cerimonia de homenagem a duas vitimas muito especiais.
Faco aqui um parenteses para dizer que nao me apetece tocar na dor, ou chocar de frente com emocoes proprias ou alheias. Pelo menos nao aqui.
Passei entao pelo Christopher (o nome do antigo hotel que nos dava sede), revi alguns colegas (militares e segurancas envolvidos nos esforcos), fui sendo atropelada (e atropelei) pelos jornalistas que corriam(os) atras dos 15 segundos de som do SG. Confesso que mesmo 15 segundos ja foi pedir demais. (oops)
A segunda paragem da comitiva, composta por umas personagens vindas de Nova Iorque, dos melhores media da praca, foi em Champ de Mars. A grande praca onde se concentram os edificios do governo e o Palacio Nacional, que um dia ja rivalizou com a Casa Branca. Desde terca feira que o edificio esta partido ao meio. La dentro, talvez alguns ministros e senadores.
A praca esta transformada no maior campo de desalojados da capital. E nao, nao e verdade: a cidade nao esta a saque, as armas e as catanas nao estao a solta, a American Airlines nao esta a dar bilhetes de graca (ui, logo eles!!), ... Mas sim, ha casos de agitacao e alguma violencia, sobretudo quando helicoptero da F. Aerea Americana decide lancar (poucos) caixotes de comida para cima de um campo de desalojados, ou quando ha alguns biscoitos distribuidos que so tem a data de producao ou quando, e verdade, alguem rouba algo e acaba (acabou) por ser arrastado pelas ruas e atirado vivo para o fogo. Nao e rumor, ha imagens. Alias, nem eram precisas. Os linchamentos eram noticia frequente no Haiti, mas raramente na capital.
O programa da visita do SG incluiu ainda a conferencia de imprensa e o discurso ao pessoal da ONU (juro-vos que mesmo juntando os dois eventos seria dificil obter os tais 15 seg de som.-oops again!).
Por fim, a despedida as duas pessoas mais especiais da missao. Nem sei o que escrever aqui. Fiz o que tinha a fazer: liguei o gravador, gravei a cerimonia e, confesso, choramos.
O final do dia foi passado a ligar para os 10 novos jornalistas haitianos para a radio, contratados a pressao. Para ser mais precisa, esta tarde mesmo. (0s nossos vao para ja ficar em casa, a curar as feridas, a procurar sobreviventes, uma casa nova, um alento novo). Ainda nao conheco os novos mas ja gosto. Alguns despediram-se ao telefone com um "courage", como se a nossa dor ou perda fosse maior do que a deles. Nao e. Nem me atrevia a pensar assim.

Para terminar o dia em beleza, um belo combate de insultos e gritaria no nosso contentor (confesso que por vezes tenho um certo gosto por estas batalhas verbais, a rocar o fisico). O tal chefe das siglas estranhas (CISS/DCISS) chegou ontem de Nova Iorque e nao gostou de nos ver acampados na sua quinta (ele e seus capangas) (acho que ainda nao viram a tv). Hoje resolveu colocar no seu escritorio os dois sofas que estavam na rua e que tem servido de cama a dois colegas, uma delas gravida. Ela mesma, foi pedir-lhe para, pelo menos durante a noite, ceder-lhe o dito sofa. Resposta: "o sofa e meu, do meu escritorio, voces e que estao a ocupar o meu espaco". Depois disto, deixo a vossa imaginacao. Para quem me conhece, so posso dizer que estive no meu mellhor: com aquelas veiazinhas vermelhas a salterem-me do pescoco!! Oh que gosto me deu! Foi de tudo! E que bela sensacao de nao ter medo de nada e de nao ter nada a perder! O pior que podia acontecer ja aconteceu... ha 5 dias. Tudo o resto sao peanuts.

Nota: Acho que tambem deviam ficar indignados, o sofa e o escritorio do chefe das siglas esquisitas tambem e vosso (nosso)! Afinal, todos os anos contribuimos com uma percentagem para o orcamento da ONU. Temos todos direito ao sofa! Bora la?

15 comentários:

  1. Que bom ler os teus relatos! Sempre fostes uma verdadeira fera...:-D
    Apesar de me sentir angustiada e com as lágrimas nos olhos cada vez que penso que ainda estás aí posso ler na primeira pessoa o que realmente se está a passar e como te tens sentido!Beijocas grandes de quem te adora e está sempre a enviar "carradas" de energia positiva para ti!!!! Força amiga!

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  2. ...não consigo imaginar-me a sobreviver a um caos desses...os que comsegue sobreviver e ainda com alguma dignidade; são heróis. Que posso dizer depois de ler esse egoísmo,demonstrado por esse senhor das siglas, que quase ninguém deve saber o que são;mas que servem para ter autoridade até sobre um sofá.... mesmo no pior dos cenários,a falta de amor aos outros manifesta-se sempre...Não te conheço pesoalmente, mas quero deixar-te ainda assim, uma palavra de conforto...não estás só...estamos a ler o que consegues transmitir e tentar apoiar da forma que nos for sendo possivel....Bjs de uma Mulher para outra Mulher

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  3. 'Bora!! :-) Essa (a dele) é uma atitudezinha filha da pu%&... Beijos aqui de Lisboa. Tb temos acompanhado primeiro com muita apreensão, depois com alívio a tua estória. Confesso que, apesar de não termos sido muito amigos :-), a única coisa que me preocupou quando vimos o "última hora - simo no haiti", foi o que te teria acontecido. A Carla manda beijos (se é que não mandou já) e eu tb mando. (a tua mãe ficou muito bem na TV). Até à Vista. Beijos. Nuno Rapaz.

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  4. Mariana, não te conheço, conheço a tua irmã Ana. Conheci-a há uns anos, após o derrame do Prestige.
    Estivémos ambos num centro de recuperação de Aves, em Esposende. A tua irmã é agora minha vizinha. Foi através dela q conheci uma Mariana que é o orgulho de imensa gente, e que todos os dias mostra a força que muitos de nós deveriamos ter.
    Ontem disse no teu facebook que me tinha inscrito nos UNVOLUNTEERS, é verdade. Serei mais util aí no que aqui, a vaguear entre o sofá e a cozinha.
    Beijos e continua assim ;)
    Força
    João Marques da Silva

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  5. Uma vez Voluntario sempre Voluntario!! Sem duvida que a Mariana da Expo nao perdeu a garra e ainda ganhou mto mais. Adorei especialmente a parte: "E que bela sensacao de nao ter medo de nada e de nao ter nada a perder! O pior que podia acontecer ja aconteceu... ha 5 dias. Tudo o resto sao peanuts."
    Beijo e muita muita forca
    Filipe Franco

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  6. Mariana

    Não te conheço, não me conheces, mas as nossas famílias sempre foram muito íntimas. A tua tia é a minha mais antiga e maior amiga.
    Fiquei horrorisada com o que aconteceu no Haiti. Dias antes, tinhamos falado em ti e, sabia que estavas lá. Falei logo com ela e, entretanto, já te tinha visto na TV.
    Ela está apreensiva, mas orgulhosa. Eu também.
    Já ouviste o nome Collares Pinto, concerteza. É a minha família.
    Quem me dera ter a tua idade e ser livre! Tens a vida que sonhei, um dia. És mais corajosa do que eu. Passei por uma situação semelhante, em menor escala, no Pico. Posso fazer uma leve ideia do que sentiste.
    Não te desejo força nem coragem, porque as tem de sobra. Desejo-te toda a sorte do mundo, nesta missão a que te proposeste.
    Um abraço do tamanho do Haiti e toda a ternura que já sinto por ti, minha heroína.
    Maria Águeda

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  7. Felizmente continuas a maior, alias como seria de esperar.
    Por ca estamos abosvidos pelas noticias para saber se está tudo bem contigo e com essa gente, dento dos possíveis. Já acalmei a nossa amiga!
    Tenho a esperança de conseguir falar contigo...e quem sabe de te ver uns dias aqui, se bem que esta hipotese me parece remota ou não fosses tu a Mariana!
    Quanto ao "senhor" do sofá...conta até 10, se não der conta até 100 e depois é melhor manda-lo para o sitio do costume.

    Beijinhos de saudades

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  8. Não te conheço, não me conheces.
    Mas fico orgulhosa de ti, da tua força e bom espírito: que consigas viver e ajudar.
    Um abraço, Mariana!

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  9. Marianinha, keep posting! Abraço enorme

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  10. Este comentário foi removido pelo autor.

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  11. Que mulher! Mariana! Espero que estejas bem amiga! Como o tempo voa... Acho que a última vez que te vi estava eu a tomar um café em Ovar e nesse momento disseste-me que estavas de partida para Macau... agora Haiti... que coragem avassaladora... que orgulho para todos nós (e para a tua família).
    Estou a trabalhar na Lousã, onde também moro (acho que já sabias... pela Carla Jacinto :-)). Estou no gabinete AAPB-Arquitectura Lda (Lousã), e depois de sabermos diariamente o horror que se vive e a falta de TUDO o que nos é de mais preciosa, achámos que podíamos ter uma voz mais activa ao participarmos. Como a nossa área é a arquitectura, queremos oferecer projectos de habitação colectiva e de escolas para que se proceda de imediato à sua realização. São projectos desenvolvidos com muita dedicação e que de certeza se enquadram no projecto de reabilitação de Port-au-Prince. Não sei se terás algum contacto directo com alguém que possa estar ligado a estas questões, nós estamos a tentar perceber qual o caminho a tomar mas como deves calcular, é imensa informação e nem sempre a mais correcta.
    Estamos ansiosos por colaborar e sentirmo-nos úteis no renascer do Haiti.
    Gostava muito de te rever! Deves ter imensas experiências para contar. Para já amiga, toma conta de ti, muita garra e coragem e até qualquer dia Mariana.
    Beijinhos

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  12. Mariana,

    Chamo-me Catarina e sou estudante Universitária no Porto. Estou a tirar o curso de Ciências da Comunicação e,no âmbito do Laboratório de Televisão, lançamos semanalmente um Jornal. Estou a fazer uma reportagem sobre o desastre que ocorreu, no Haiti, juntamente com o meu colega Manuel. Esta ideia surgiu depois de ele saber que a Mariana residia em Ovar (penso eu), tal como ele. Gostaríamos de saber se seria possível que nos desse uma pequenina entrevista ou algum testemunho do que tem visto, sentido, vivido... Seria óptimo que essas informações nos fossem fornecidas através do skype, webcam ou outro meio sustentado por imagem e som (mesmo que as condições não sejam as melhores).

    Se nos quiser contactar (seja qual for a resposta): anacatarina-correia@live.com.pt ou dmanuel3@hotmail.com

    Obrigada,

    Catarina Correia e Manuel Correia

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  13. Um voluntário é ...um voluntário!
    Um cretino em qualquer cenário, é sempre...um cretino!! Pobre sofá.
    Um abraço

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  14. Olá Mariana. Ainda à dias vi o filme "A Estrada" e depois de levar uma ensaboadela de imagens terroríficas do Terramoto, associei-o ao como voçês estariam a passar por aí... De repente não somos nada, não temos nada, a não ser que lutemos ou tenhamos alguma sorte à mistura. E o mais triste é ver que mesmo assim o egoísmo faça parte de sujeitos como o do sofá. Sinceramente não faço questão de me deitar nele!
    Beijinhos do pessoal da Habitovar e que te corra tudo pelo melhor!
    Fred

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