quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Jogador coxo

Uma figura de baixa estatura, com um andar ligeiramente cambaleante que lhe dava um certo estilo (na verdade, fruto de um problema de saude) e um sorriso permanente, acompanhado de duas covinhas nas bochechas. Nao havia como nao gostar dele.

Tinhamos encontro marcado todos os dias a horas certas: do meio-dia a uma e meia. De segunda a sexta. Os dois fechados num estudio. Confesso que odeio rotinas e obrigacoes regulares, mas neste caso, eu fechava ligeiramente o olho aos meus principios e era fiel aos nossos rendez-vous diarios.

Durante muito tempo, ele era uma personagem sempre sentada. Eu chegava atrasada ao estudio, ele ja sentadinho na cadeira, o melhor malabarista da mesa de mistura. Um dia, quando nos cruzamos no corredor, perguntei-lhe inocentemente: 'Mas o que tens na perna? Estas magoado? Estas a coxear? Foste ao medico?"
Se ao menos eu tivesse parado na primeira questao... Nao, tinha logo que enfiar 4 interrogacoes numa intervencao so. Resposta: "Na verdade, eu sou coxo desde muito pequenino. Tive uma doenca, ainda tentaram operar mas nao resultou. O meu sonho era ser jogador de futebol". (Mariana, hora de te esconderes no buraco.)
Apesar da perna, ele ainda nao estava convencido. Ha cerca de tres meses, entrou na equipa de futebol MINUSTAH FM. Antes disso, ja me tinha pedido o equipamento da seleccao portuguesa. Nao falhei. De ferias em Macau, comprei-lhe nao so a camisola dos tugas como ainda uma t-shirt do Super Homem.

A nossa relacao foi feita, entao, dentro de um espaco exiguo, repleto de colunas, microfones, botoes, auscultadores, telefones e vidros que nos separavam dos restantes estudios e mundos. Na primeira meia-hora, disputavamos os auscultadores. Entretanto, eu fazia os contactos telefonicos com os convidados e, quando eles respondiam com um mar de crioulo, era ele que me salvava: uma mao e uma orelha no telefone, outra mao e outra orelha na emissao e na mesa de mistura.
A meio do programa, ja nenhum de nos queria os auscultadores. Ja nao estavamos concentrados na emissao, atentos nas nossas conversas e confissoes. Ele era uma especie de diario, todos os dias lhe 'escrevia' as ultimas da minha vida haitiana.
Do outro lado, ele falava-me da namorada, muito jovem e inocente, da escola de linguas, da irma conflituosa, dos dois filhos que nao via ha anos (com a mae nos EUA), do sonho de ir aos States, da paixao pela radio, dos tempos em que tambem era DJ.

Ao longo do programa, ele comunicava por gestos estranhos com os jornalistas que estavam a fazer o directo. Uns gestos que ele dizia serem universais, mas que na verdade ninguem percebia. Mas todos faziam de conta que sim. Ele levava a radio demasiado a peito. Nao admitia falhas, nem atrasos na programacao, nem erros na linguagem, nem ma colocacao de voz, nem frases longas, ....
Era obcecado mas nao conseguia manter a postura seria por muito tempo. Derretia-se todo ao primeiro sorriso dos jornalistas.

Aqui que os auditores do Haiti nao nos ouvem, tenho que confessar uma coisa. Por vezes, ele fazia-se passar por um ouvinte e enviava mensagens para o nosso programa (Tous pour Haiti, um programa centrado em projectos de cooperacao/humanitarios). Era o Joel, de Carrefour. So o nome era mentira, ja que ele era orgulhoso do seu bairro.


Como nem sempre os nossos encontros diarios eram a dois, por vezes, quando a conversa era so nossa, falavamos em espanhol, para nao haver intromissoes. Tinha vivido an Republica Dominicana e agora estudava tambem na Universidade de Linguas de Port-au-Prince. Foi precisamente la que se encontrava no dia 12 de Janeiro. Mario Bazille nao escapou ao terramoto. Era o melhor tecnico da MINUSTAH FM, disputado e adorado por todas as equipas.
Ate hoje, ninguem aqui na redaccao improvisada conseguiu pronunciar o seu nome em voz alta. MARIO

3 comentários:

  1. Mariana, se não conseguiste gritar MÁRIO, pelo menos conseguiste escrever sobre ele e no fundo para ele. Só isso já é um grande passo. Força Mariana! Coragem Marina! Embora deste lado, estamos aqui, todos os dias contigo. Estamos aqui a ver-te, a ler-te e às vezes a ouvir-te... Beijo grande.

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  2. Mariana
    Comoveu-me muito o teu relato das relações que tinhas com o MARIO.
    É triste perder um amigo, de uma hora para a outra. Eu sei. Perdi muitos em África. Despediamo-nos no meio de uma festa e, passado tempo, vinha a notícia: "Morreu fulano, numa emboscada... morreu sicrano, desfeito por uma mina..." Ainda hoje, com 65 anos, se penso neles, uma dor fininha, aperta-me o peito e, vejo-os, jovens, cheios de ilusões e de projectos.
    Desculpa, querida. Hoje não consigo brincar. Só posso dizer-te, que sinto a tua dor e a entendo bem.
    Beijinhos, menina valente.
    Maria Águeda

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  3. Se partilhar a dor a aliviasse, eu ficaria com um bocadinho. Grande abraço!

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