quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Sete meses depois, volto aqui a todo gás. Entro a abrir com o meu Pisca Pisca, o carro-gente que me acompanha nesta missão Haiti. O Pisca, que já vai nos 18 anos, é uma constante caixa de (más) surpresas. Pára quando quer, parte o eixo (não, não é culpa da condutora e da pouca habilidade para desviar-se dos buracos), perde o ar dos pneus a toda a hora, tem um volante que não quer rodar, fica sem a caixa de velocidades. Enfim, tem os seus caprichos e sempre quando a condutora está sozinha (no meio da noite, em estradas sem luz e nem sempre conhecidas pelas condições de segurança).
Regressada há uma semana e pico de férias, peguei no Pisca e lá fui. Não notei diferenças na visibilidade. Como de costume, não vejo nada de noite, cega pelos faróis alheios e pela fraqueza das minhas próprias luzes (recém-compradas, para que conste). No sempre complexo regresso a casa (verificar se não há ninguém na rua-sair do carro a correr com os faróis acesos -abrir garagem- regressar ao carro-entrar a todo o gás -fechar garagem, não sem antes verificar se os maus não entraram no edifício) reparei, finalmente, que um dos faróis não funcionava. O Pisca não vê do olho esquerdo.
Bah! Peanuts! Eu já não via nada mesmo! De qualquer forma, há pelo menos 3300 Tap Taps que nem um só farol têm, nem piscas, nem qualquer tipo de luzinha. O mesmo com os camiões, aos milhares, com um farol a funcionar, no máximo. À noite, parecem todos motinhas a circular com um único pontinho de luz. Por isso, PISCA adaptou-se finalmente à realidade local.
Naturalmente, para estas situações há sempre uma qualquer lei de Murphy que se aplica. Nesta semana fui parada três vezes pela policia haitiana, sempre de noite, em estradas sem movimento e eu, sempre sozinha no carro. Ontem, meia hora depois de ver mais um carro da policia a passar só com um farol ligado, fui parada, mais uma vez, p'los seus guardas.
Em crioulo falaram. Ainda bem, fiz de conta que não percebia bem.

"-Problema, problema madame, um dos faróis não funciona." (cara séria) (rua vazia, escura)
"-Oi?"
"-Farol, luz, não funciona."
"-Jura?! Xi, quando terá sido? Não dei conta. Ai que chatice! Quem terá sido o malandro?" (cara de parva, com um leve sorrisinho inocente) (rua vazia, escura)
"-Documentos" (cara mais séria)
"-Com certeza seu guarda" (xi, os documentos estão em nome do mecânico e a carta de condução é daquelas cor-de-rosa que já nem em Portugal se usa)
(deverei protestar, dizer que não é justo já que há 3300 tap taps sem farol e outros tantos carros de policia em igual ou pior estado? é melhor não. continuo com a carinha de parva)
"-Pode seguir!!" (cara séria)
"-Mas, oh seu guarda, já agora, é o farol direito ou o esquerdo?? Que chatice, vou já, já reparar!"

ACHAS??? Afinal, Pisca que pisque tem sempre que ter um aberto e outro fechado, certo?

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Falta do que Fazer...

Andei a adiar este momento durante algumas semanas. Queria estar com a mao quente, que nem coisa de basquetebolista. Enfim, nao sei se esta quente ou fria, mas arrisco.
Regressei de Macau com a ideia fixa de salvar o meu antigo computador das ruinas da sede da ONU. Uma especie de Em Busca do Tempo Perdido (sim, eu sei, ja passaram cerca de 3 meses). Tarefa complexa essa. O antigo complexo utilizado (e arrendado) pela ONU ja tinha sido entregue ao proprietario e ninguem tinha autorizacao para la entrar. Ninguem, salvo seja, excepto os saqueadores, claro.
Preparei-me a rigor. Nada de acompanhantes, nada de carros oficiais. Euzinha, meu Pisca-Pisca e um sorriso nos labios misturado com uma certa (falsa) ingenuidade. Nao foi dificil de entrar na propriedade.
Depois, encarar as ruinas e as memorias, de seguida procurar haitianos que me ajudassem a trepar ao meu antigo escritorio, a partir das pedras, pedacos de cimento e lixo, restos do edificio principal que se desmoronou ao ritmo do tal treme-treme.
Uma mao puxa ali, uma outra puxa a perna, outra aproveita-se e sobe onde nao deve para, num exercicio meio contorcionista, 4 intrusos (eu e meus desconhecidos haitianos) invadirem o meu ex-escritorio. Juro, ainda pensei que estava a segundos de por os olhos em cima do meu antigo computador e, mais importante, do unico exemplar da minha quase-tese-de-mestrado Desporto para a Paz e Desenvolvimento (o caso do Haiti). Mas, dentro da redaccao, nada. Papeis. O chao estava branco, um misto de po e folhas.
Ainda tive esperanca de enconrar o meu teclado portugues. Afinal, tambem ele era branco, talvez se confundisse com o cenario. Mais, tem os acentos em parte incerta aos olhos dos haitianos, para alem do c de cedilha que nao lhes serve para muito. Engano meu. Deve ter sido o primeiro teclado a ser saqueado, dado ser uma excentricidade no mercado local.
Computador: nada, teclado: nada. Curiosamente, o teclado original, modelo local, estava ainda la. Obrigadinha. Esse tambem eu o deixei. Ainda la esta.
Mas nao sai de maos a abanar: reencontrei a minha gramatica francesa, a enciclopedia e o meu dicionario portugues-frances e vice-versa. Parece que a rapaziada do saque nao e muito dada as letras.
A caca (que jeito dava ter agora uma cedilha) ao material do escritorio perdido nao se ficou por aqui. Voltei varias vezes ao local, em jeito de investigacao. Passei a conhecer o proprietario do complexo, os capacetes azuis que ainda estao ali estacionados, os segurancas privados do local que fazem de conta que nao sabem dos roubos, os curiosos, enfim ja sou uma habituee das ruinas. E assim consegui descobrir um deposito cheio de computadores, fotocopiadoras, radios de comunicacao e micro-ondas, tudo restos da nossa sede. Mas, nao, o meu computador nao estava la. A ajudar-me nessa busca estava o proprietario que orientava dois dos seus homens: “va, procurem um teclado branco, e o teclado da menina. E o unico. Se estiver ai, vai estar tambem o computador.”
Nem uma coisa, nem outra. Ja nao tem importancia. Recomecei a reescrever a quase-tese e, desde ontem que recuperei o tempo (e o trabalho) perdido. As linhas que hoje acrescentar ao trabalho vao ser totalmente novas. Teclado? Bem, ate aqui compreenderam tudo, nao? E onde era mesmo que estavam os acentos e o c de cedilha?

terça-feira, 23 de março de 2010

Mais do mesmo

Pensei que era assunto encerrado. Que falaria da radio, da recuperação do Haiti, da procura de casa, mas que não voltaria a escrever sobre o barco. Era assunto encerrado, pensei. Engano meu. O Titanic Esmeralda é omnipresente. Todos os dias, Todos os funcionários da missão recebem Todos os emails relativos ao barco, que seria de cruzeiro se não estivesse sempre fundeado e/ou atracado (conforme os dias). Assunto Emails: “Não há a/c, lamentamos.” “Estamos a tratar do A/C, lamentamos assim-assim.” “Continuamos a ter problemas mas está quase.” “A carreira para o barco parte às 18h.” “Hoje às 18.30h.” “O porto de embarque para o bote-que-nos-leva-vagarosamente-ao-barco vai mudar de localização.” “Afinal, ainda não foi desta que mudou, quase, quase.”
Para mim, é penoso ver emails, quaisquer que sejam. Simples: ainda não tenho computador (nem uma secretária, ou cadeira e outros pormenores afins, mas isso é uma outra conversa). A (quase) alternativa é chegar muito cedo à rádio, embora essa técnica esteja a ser cada vez mais utilizada pelos jornalistas haitianos (vindos de um dos 400 campos de deslocados da capital), que optam por entrar duas horas antes do horário para, também eles, irem à caça da internet, i.e., das redes sociais.
Ou seja, quando finalmente encontro um computador livre, o que é que encontro? Uma caixa cheia de emails sobre o barco. Bem, também pode ser pior, como aquele email da administração da missão da ONU que era bem claro: É PROIBIDO DORMIR NOS ESCRITÓRIOS DA BASE. TÊM 48 HORAS PARA SAIR. (Quase que juro que estava a negrito). Razão oficial: “Agora, os funcionários da ONU já têm alternativa: o barco.” GRRRRRR, grunho eu.
Parecia uma declaração de guerra. Eu, no imediato, optei pela técnica da defesa: “eles escreveram a palavra office, não fazem referência às tents montadas às portas dos offices.” OK, OK, depois rendi-me.
Antes de ser expulsa da minha ‘casa’ pelos capacetes azuis, resolvi tomar a iniciativa, desmontar a tenda e rumar a outro poiso. Eu disse desmontar? Não será a palavra indicada. Desarticular, também não. Dobrar em 8, várias e maníacas vezes, num acto de contornos contorcionistas (será isto uma redundância)?
Passo a explicar. Sugestão da minha irmã querida, comprei para levar para o Haiti uma daquelas tendas mágicas, que se montam sozinhas, mal retiradas do respectivo saco e atiradas ao ar. LINDO! Mas, e depois? Estalamos os dedos e ela dobra-se em oitos (8s) e encaixa perfeitinha na sacola? Nã!!
Quanto ao manual de instruções, garanto que se algum dia encontrar o autor/ilustrador terei uma conversinha com ele, daquelas à moda do célebre sofa, a mesma que servirá para a minha querida irmã.
Mas, de regresso ao desmontar: 60 minutos depois do início do acto da pseudo desmontagem, tinha cinco haitianos à volta da tenda (garanto que a tenda ganha vida, dá cacetadas, empurrões e outros amassos, quando mal manuseada), numa guerra para enfiá-la na sacola.
“Li pa bon”( não está bem), dizia um.
“ nap recomencé” (vamos recomeçar), pela enésima vez, acrescento eu.
“ah, mon chere!!” (expressão aparentemente inofensiva mas que em crioulo é qualquer coisa como: ‘ah, meu tanso, não é assim, só estás a fazer cagada) nota: não fui eu que disse, foram eles.
Enfim, no final, os cinco homens conseguiram (quase) dominar a bicha e dobrá-la em forma estranha, e três vezes maior do que o tamanho do saquinho.
Tive, portanto, que mudar de casa. Barco? Nã, não sou assim tão fácil. Regressei finalmente à minha casa, a tal que nunca caiu. Faz hoje uma semana que recomecei a dormir debaixo de cimento, de betão e tantas outras coisas que podem desmoronar e eventualmente causar algum tipo de desconforto. A readaptação ao cimento tem sido gradual. Primeiro dormir de luz acesa. Depois, perceber que se houver um terramoto, a electricidade (ou gerador) são das primeiras coisas a falhar. Apague-se a luz. Porta aberta, aconselhou o meu chefe. Não se aplica ao meu caso. À saída da porta tenho uma escada à direita e uma varanda à esquerda, normalmente as primeiras duas coisas que caem em primeiro lugar. Ainda não tive tempo para decidir qual o canto à casa/estúdio que será eleito em caso de tremideira. Para analisar daqui a umas duas semanas. Agora, vim no instante a Macau e já volto. Depois, logo penso de novo em cimento, betão e, pior... no barco. GRRRRR.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Sauna Flutuante





Confesso. Fui passar uma noite ao cruzeiro fundeado ao largo de PAP, enviado para alojar os funcionários da Missão. Eu, que por várias vezes gritei (e escrevi neste mesmo local) que não me apanhavam lá. Não, não foi fraqueza. Decidi que tinha que ir espiar o local, para poder criticá-lo melhor. Criticar, não Porque eu NUNCA critico, eu só relato factos.


Antes mesmo do barco chegar, o povo da missão já lhe tinha dado nome. O Love Boat. Eu, só para contrair, dei-lhe outro título: Titanic. Na verdade, a barcaça, chama-se qualquer coisa Esmeralda. Pouco importa, até porque já teve vários nomes nas ultimas décadas, o último dos quais ainda é legível, apesar da mais recente mão de pintura para efeitos cosméticos.


Confesso. Tinha uma certa vontade que a experiência confirmasse o meu pessimismo. Porém, não era preciso tanto! Mas, como nunca critico, vamos aos factos:


Para chegar ao Esmeralda Titanic é todo um processo. Registo à porta do autocarro estacionado na Log (Base Logística), entrada imediata no dito (sem direito a pausa no exterior para fumaça enquanto se espera por outros passageiros), escolta policial até ao pseudo porto, desembarque no dito, caminhada curta mas com alguns obstáculos temíveis (pedras e militares americanos), entrada no bote. (paragem para recuperar fôlego) ...


(continuação) Bote parte, ondas de, literalmente, marear qualquer um e... nada. A viagem foi interminável. E eu só conseguia ouvir algumas alminhas a comentar: 'ai que estranho, é a primeira vez que apanhamos uma viagem assim'. Sim, claro, logo no dia em que eu decido vir é que acontece! Deu-me a impressão que estava numa batalha: de um lado eu, a pessimista do Titanic, do outro, todos os restantes passageiros, os tais da Esmeralda Love Boat. Mas a sorte (azar) estava do meu lado. Não, eu nunca critico.


Mal entrámos na barcaça, (não sem antes termos saltado olimpicamente do bote para a plataforma, assim ditou a maré) começaram-me a subir os calores. Mais literalmente era impossível: não havia ar condicionado! Acho que até o próprio Titanic, o original, teria algum tipo de refrigeração (oops, sem qualquer tipo de referencia ao acto final).


A partir daí, a minha batalha estava ganha. Por muito que me tivesse calhado o melhor quarto (de certeza que foi dedo dos optimistas), que a comida até não fosse má (mas a cozinha fechava às 8.30), que estivesse rodeada do gangue (um misto de tugas, brasileiros e a nossa italiana), que o bar estivesse aberto sem hora de fecho, que o ginásio estivesse a rolar (embora as duas piscinas - interior e exterior- estivessem sem água), que, que... nao havia como evitar: o Titanic era uma sauna! Se calhar é moda noutros paises. Ando um bocado afastada dessas lides.


última confissão. Depois de uma noite suada (e isto tem tudo menos segundos, terceiros ou quartos sentidos), duche em água... quente (e havia dúvidas??), seguido de pequeno-almoço numa sala também... (escusado repetir), decidi fazer aquele sorriso-de-quem-vai pedir-algo-que-não-está-nas regras. "Por favor, señorita, puedo ir a desayunar arriba? Juro que cuando termine vengo a traer todas las cosas". (E juro mesmo que tinha intenções de entregar toda a louça à procedência)


E agora que vem a tal última confissão: terminado o pequeno-almoço, pus-me nas fotos e na fumaça até reparar que os passageiros já estavam a entrar no bote. Desci como louca e esqueci-me da louça do pequeno-almoço no convés! Oops! Disculpa señorita!

terça-feira, 2 de março de 2010

Haiti Cherie

O Pisca-Pisca esta escondido na Log (Base logistica). Ou talvez seja melhor dizer que esta preso. E um misto. Escondido porque os carros privados nao podem entrar nem permanecer neste complexo (onde, para alem de trabalhar, ainda vivo). Preso porque se saio com ele, nao posso voltar a entrar. So com os meus pezinhos (35/36), o Pisca fica out. Bem, nem sempre. Tive a ideia radical de sair com ele uma destas noites e de decidir ficar a dormir numa verdadeira casa... de CIMENTO! (muito mais radical)
No regresso a base, pela manha, ja atrasada, Pisca foi barrado na entrada. Joguei todas as cartas: a vitima e sobrevivente, a falta de estacionamento num raio de 5 kms, o facto de ser imprescindivel para o funcionamento da radio (ok, exagerei um pouco)...
Nada. Ultima tentativa: desatar a chorar! Resultou, o Pisca entrou ('e a primeira e ultima vez ouviu Madame?'). Nao, nao vai ser. Ja tenho amigos no turno da noite da cancela da Log, a entrada nocturna esta garantida a quatro rodas.


A ultima da Missao e a chegada do cruzeiro. Ha mais de um mes que se falava. No inicio, pensei que fosse piada. De mau gosto, alias. Mas nao. Um verdadeiro cruzeiro esta fundeado ao largo da capital. Veio albergar os que trabalham na Missao da ONU. Com piscinas, ginasio, restaurantes e tudo o que vem no habitual pacote. Felizmente, nao e obrigatorio. Mais nao posso comentar. Ossos do oficio.

A vida na Log em quase ou nada mexeu (pelo contrario, ja tremeu, umas 4 vezes a 4 ponto qualquer coisa so na ultima semana) desde a minha saida no inicio de Fevereiro. Mas, nas ruas, a vida avanca. Malas de viagem, lagartos feitos de lata, banana frita acompanha de uma especie de rojao (numa competicao para encontrar o mais frito e oleoso), cartoes pre-pagos de telemoveis, riz national (com feijao), tulipas brancas, macos de tabaco 'Comme il faut' (na verdade, il faut nao os fumar, so mesmo em caso de ultimo recurso, considerada tambem ideia muuuiiito radical), pinturas que resistem a sol e chuva, rum Barbancourt (marca nacional, tomada com muita coca-cola e algum desespero - radical). Tudo isto esta a venda nas ruas. Isto e mais alguma coisa. Porque os haitianos nao querem perder tempo. Nem podem.


Alguns dos campos de desalojados ja estao com cara nova: alinhados com tendas uniformes, acabadinhas de chegar das linhas de producao de algum pais doador. Para ja resistiram as chuvas, mas para ja foi so um primeiro e timido aviso (pelo contrario, a sul do pais, o mau tempo matou ontem mais de vinte pessoas). A epoca dos furacoes e mais tarde, comeca la para os finais de Maio. Pena as tendas serem todas brancas ou beges. O haiti e um pais de cor, muitas cores.


Nos campos de desalojados ha um misto de cheiros, a maioria demasiado agressivos, mas tambem musica, oracoes, jogos de cartas, bailes improvisados de fazer colar os corpos, aulas para os mais pequenos, ecrans gigantes com projeccao de filmes, jogos de futebol e campanhas humanitarias.

Apesar das replicas, das chuvas, de 3milhoes de pessoas ainda nao terem coragem de dormir sob cimento (eu fi-lo no tal dia que sai radicalmente com o Pisca e, logo nessa madrugada, a terra voltou a tremer. Apesar de estar a dormir num colchao estrategicamente colocado junto a porta de saida, de nada valia. Nao acordei), de ainda se chorar (e sonhar) os mais de 25o mil mortos, a Vida continua. Na sexta fui festeja-La, a convite de um dos animadores da radio. Eu e o gangue lusofono (Mariana, Ana, Mariana) e o Pisca (o prisioneiro da Log). Fomos recebidos no jardim da casa do Anderson, onde la estava a tenda (elemento omnipresente), varias familias (primos, tios, a vizinha e seus tios e primos, a sra das limpezas e respectivos familiares) e, como sempre, musica a acompanhar. Foi noite de Kompas, o genero nacional. Um misto de Africa e Caraibas, com um toque final muito haitiano. So dancado com cola nos corpos. Uma especie de dois em um.


quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010














Fotos em Cite Soleil, o bairro de PAP, considerado pela ONU em 2004 como o 'local mais perigoso do mundo'. Nada disso.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Pisca-Pisca (o carro-quase-jipe)

Hoje foi dia de montanha-russa: hora para cima, hora para baixo e para os lados.
Comecemos pelas partes baixas. Reuniao as 9 da manha com toda a redaccao. Meu adorado chefe anuncia mudancas no funcionamento da casa. Para encurtar a historia: de 14 jornalistas, passei a coordenar apenas um. Acho que deve ser recorde mundial: uma supervisora para um jornalista! Parte alta: logo apos a reuniao, quase todos os 14 vieram abracar-me com a lagrima no olho (OK, eu sei que nao e pelos meus olhos, mas sim pelos apeteciveis metodos Mari, conhecidos como regras-com-excesso-de-flexibilidade).

Pouco depois de iniciadas as minhas novas funcoes um-para-um, tive que ausentar-me da radio para uma maratona burocratica. Para sair do pais durante as tais duas semanas obrigatorias (cura de stress, assim lhe chamam), tenho que preencher um documento no qual tem de constar cinco assinaturas de outros tantas unidades da Missao (daquelas com siglas estranhissimas, CMS, UNV, Security algo, etc). Naqueles outros tempos, ou seja A.T., todo este mega procedimento era feito electronicamente. Agora, D.T., voltamos a idade do papel. Assim, a maratona pressupoe andar com 3 papeis na mao e percorrer kms e kms na Log. Primeiro, ida aos psicos para confirmacao de stress pos-trauma. Resultado: primeira assinatura. Segundo, mostrar essa justificacao ao respectivo supervisor para mais um rabisco. Terceiro, unidade dos voluntarios para obter mais uma permissao. Quarto, caminhada de 15 minutos ate ao fundo da Log, para obter a autorizacao da seguranca. Regresso a zona central da base (baptizada como downtown), para entregar o papelinho (ja cansado de tanto rabisco e carimbo) na administracao para uma quinta assinatura.
Apos essa assinatura, hora de entregar o documento na Travel Unit. Agora aguardo o itinerario da viagem. Nao, ainda nao e o fim. Depois, terei que ir a unidade de transporte para confirmar o aviao ONU. E antes, antes da partida ainda terei que passar pelas Financas.

Mas passemos as partes altas: o/a Pisca-Pisca resuscitou!!! Pisca-Pisca e o meu carro-quase-jipe que, desde que a terra tremeu, estava desmaiado na garagem sem bateria. Na verdade, a bateria era supostamente nova, pelo menos foi isso que o meu mecanico me cobrou em Novembro passado. Na conta da reparacao tambem constava o oleo. Mas, surpresa, hoje nem uma
pinguinha o bicho tinha. O bicho ou a bicha, nao sei bem.
A historia do Pisca e longa e esta directamente ligada ao The Club, o tal grupo de amigos que praticamente ficou enterrado na sede da ONU (e sobre os quais ainda nao me atrevi a escrever nada). Quando pela primeira vez conduzi no Haiti, fi-lo numa especie de carro (carcaça com motor, para ser mais precisa) que nao tinha travao de mao nem piscas. Ora, foi precisamente quando contava estes pormenores ao The Club que, perante a falta de palavra em ingles, utilizei o termo portugues para falar dessa ausencia dos sinais intermitentes de mudanca de direccao. Tornaram-se logo fãs da palavra e, dias mais tarde, quando chegou o meu carro-quase-jipe baptizaram-no de Pisca-Pisca.
Houve, no entanto, alguns problemas quanto ao genero do carro-quase-jipe. Naturalmente, que para mim era um rapazola, o Pisca, substantivo masculino. Mas para o The Club (que se comunicava em ingles) era uma 'she'. Ainda tentei explicar que havia engano no sexo. Nao adiantou. Acreditavam que, se a palavra que terminava em 'a', era necessariamente feminina. Ainda por cima duas palavras seguidas: piscA-piscA. A maioria venceu. O carro-quase-jipe passou de macho a femea.
Voltando ao periodo D.T.. Pisca-Pisca is back. Hoje fui com a ambulancia (que ja foi quarto), carregar a bateria do meu carro. Depois de reunir os vizinhos de toda a rua para empurra-lo para fora da garagem, fez-se a ligacao (cabos positivo, negativo e tal) et voila!
O/A Pisca tossiu mas arrancou e foi de imediato a bomba de gasolina (o reabastecimento ja esta normalizado no pais) onde tambem coloquei o oleo (o tal que paguei em Novembro mas que evaporou).
Como qualquer cidadao responsavel, mal estacionei junto a bomba, desliguei o motor. ERRO!!! Foi preciso voltar a dar-lhe com o negativo-positivo para voltar a pegar.
Arrancou de novo, eu, meio braco de fora e la fui estrada cima, oh!, deixei o carro ir abaixo. Nova operacao carregamento de bateria com auxilio da eterna ambulancia. Enfim, como estava com fome, foi preciso fazer mais uma paragem para um almocinho crioulo. Sobremesa: novo carregamento de bateria.
Depois, a ultima prova. Fazer uns 8 kms de subidas, descidas, carros de militares, camioes, mercados informais, bananas e legumes espalhados pela estrada, peoes, escombros e tudo o que mais existir, entre o bairro onde habitava e a Log. Uma prova de obstaculos sem direito a uma unica paragem de motor. Prova superada!
Agora, o/a Pisca-Pisca esta estacionada na base dos capacetes azuis da Guatemala, a levar com uma dose cheia de bateria!!! Amanha, Pisca-Pisca is BACK for GOOD! SAIAM DA FRENTE!!!

sábado, 30 de janeiro de 2010

Uma ex-(quase)desilusao







Foi como um soco no estomago, daqueles que doem mesmo, quando os abdominais estao completamente distraidos. Numa altura de crise, nao esperava que ele, Parnel Beauvoir, o elemento mais velho da minha equipa, anunciasse a frente de todos os jornalistas que iria de ferias, quando, na verdade, eu ja lhe tinha dito que nao poderia faze-lo nessa altura.

Ok, e so um pormenor de administrativo, uma questao laboral, uma infeliz planificacao...
Talvez. Mas nao nestas circunstancias. E nao com o Parnel. Ele, o mais velho dos cinco da equipa. Ele, o antigo director de uma escola em Les Cayes (cidade do sul do Haiti). Ele, que saia todas as sextas a uma da tarde para regressar a cidade natal (eu fechava o olho ao cumprimento do horario de trabalho e piscava-lhe o outro, desejando-lhe bom f-d-s). Como podia nao deixa-lo sair mais cedo?Em Les Cayes, tinha a mulher, tres filhos (o quarto morreu em Agosto passado, poucas horas depois de nascer), um sobrinho orfao, e umas outras 3 criancas que, no Haiti, sao conhecidas por 'restavek' (rester avec). A domesticidade infantil afecta mais de 200 mil criancas no pais. Escravatura moderna tambem lhe chamam. Nao para o Parnel. Sempre jurou a pes juntos que na sua casa, todas as criancas, as suas e as dos outros, tinham as mesmas tarefas e todos iam a escola. Nao tenho a menor duvida.

Voltando ao soco, como foi possivel nao respeitar o que lhe tinha dito? E a frente de todos os outros?

Ele, a quem eu recorria para dar licoes de moral aos restantes quatro (quando eu sozinha nao dava conta do recado). Ele, o mais respeitado por todos; ele que nunca se zangava a nao ser quando o seu carregador do telemovel desaparecia (mas que ele insistia em deixa-lo na redaccao, quando sabia tratar-se de um objecto muito apetecivel, sobretudo no seio de uma equipa pouco organizada e muito esquecida). Ele, que me foi esperar a entrada de Les Cayes, na primeira vez que conduzi o Pisca-Pisca (o meu carro-quase-jipe) para fora da capital. Ele, que me recebeu a mim e aos meus co-pilotos com bebidas e que, as escondidas, pagou a um haitiano para tomar conta do meu Pisca-Pisca e dar-lhe uma ensaboadela.

Ele, que se lamentava sempre que eu me ausentava do pais (bem, nao sei se era por minha causa, talvez fosse por saber que a minha substituta lidera com chicote).

A questao, das ditas ferias, foi resolvida com uma reuniao extraordinaria. Pela primeira vez, coloquei o fato de supervisora, juntei os 5 e anunciei que, a partir desse dia, estavam extintos os metodos da Mari, tambem conhecidos por regras-com-excesso-de-flexibilidade. Entravam em vigor as regras ONU.
Parnel, mais uma vez falou por todos, e por si. Com a calma e a sabedoria de sempre. Aquele que parecia um ponto de ruptura com a equipa, nao foi mais do que um dia nublado. Parnel acabou por decidir nao ir de ferias, eu acabei por recuperar as regras-com-excesso-de-flexibilidade. Na sexta feira seguinte, como era nossa tradicao, Parnel saiu mais cedo para Les Cayes e eu pisquei-lhe o olho.

Mas tudo isto foi passado, foi A.T. Foi em Dezembro, la por alturas do Natal.

Parnel Beauvoir, o meu jornalista (e hoje deixo de lado qualquer modestia, abusando do pronome possessivo), morreu no dia 12. Estava a cortar o cabelo na barbearia de sempre, onde tambem iam os outros dois elementos masculinos da MINHA equipa. Se ao menos eu nao o tivesse o habito de os deixar sair tao cedo da redaccao...

Ah, o carregador nao se perdeu nas ruinas da sede da ONU. A Naomie, elemento feminino da equipa, apercebeu-se esta semana que tinha um carregador na carteira. La estava o autocolante resistente a guerra, com o nome: BEAUVOIR (Parnel). O Parnel bem sabia a equipa que tinha.

Rimos. O mundo pode cair mas ha coisas que nunca mudam. Ainda bem.










sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Mario Bazille (a unica foto que nao ficou enterrada nos escombros da sede Missao, tirada a partir do telemovel)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Jogador coxo

Uma figura de baixa estatura, com um andar ligeiramente cambaleante que lhe dava um certo estilo (na verdade, fruto de um problema de saude) e um sorriso permanente, acompanhado de duas covinhas nas bochechas. Nao havia como nao gostar dele.

Tinhamos encontro marcado todos os dias a horas certas: do meio-dia a uma e meia. De segunda a sexta. Os dois fechados num estudio. Confesso que odeio rotinas e obrigacoes regulares, mas neste caso, eu fechava ligeiramente o olho aos meus principios e era fiel aos nossos rendez-vous diarios.

Durante muito tempo, ele era uma personagem sempre sentada. Eu chegava atrasada ao estudio, ele ja sentadinho na cadeira, o melhor malabarista da mesa de mistura. Um dia, quando nos cruzamos no corredor, perguntei-lhe inocentemente: 'Mas o que tens na perna? Estas magoado? Estas a coxear? Foste ao medico?"
Se ao menos eu tivesse parado na primeira questao... Nao, tinha logo que enfiar 4 interrogacoes numa intervencao so. Resposta: "Na verdade, eu sou coxo desde muito pequenino. Tive uma doenca, ainda tentaram operar mas nao resultou. O meu sonho era ser jogador de futebol". (Mariana, hora de te esconderes no buraco.)
Apesar da perna, ele ainda nao estava convencido. Ha cerca de tres meses, entrou na equipa de futebol MINUSTAH FM. Antes disso, ja me tinha pedido o equipamento da seleccao portuguesa. Nao falhei. De ferias em Macau, comprei-lhe nao so a camisola dos tugas como ainda uma t-shirt do Super Homem.

A nossa relacao foi feita, entao, dentro de um espaco exiguo, repleto de colunas, microfones, botoes, auscultadores, telefones e vidros que nos separavam dos restantes estudios e mundos. Na primeira meia-hora, disputavamos os auscultadores. Entretanto, eu fazia os contactos telefonicos com os convidados e, quando eles respondiam com um mar de crioulo, era ele que me salvava: uma mao e uma orelha no telefone, outra mao e outra orelha na emissao e na mesa de mistura.
A meio do programa, ja nenhum de nos queria os auscultadores. Ja nao estavamos concentrados na emissao, atentos nas nossas conversas e confissoes. Ele era uma especie de diario, todos os dias lhe 'escrevia' as ultimas da minha vida haitiana.
Do outro lado, ele falava-me da namorada, muito jovem e inocente, da escola de linguas, da irma conflituosa, dos dois filhos que nao via ha anos (com a mae nos EUA), do sonho de ir aos States, da paixao pela radio, dos tempos em que tambem era DJ.

Ao longo do programa, ele comunicava por gestos estranhos com os jornalistas que estavam a fazer o directo. Uns gestos que ele dizia serem universais, mas que na verdade ninguem percebia. Mas todos faziam de conta que sim. Ele levava a radio demasiado a peito. Nao admitia falhas, nem atrasos na programacao, nem erros na linguagem, nem ma colocacao de voz, nem frases longas, ....
Era obcecado mas nao conseguia manter a postura seria por muito tempo. Derretia-se todo ao primeiro sorriso dos jornalistas.

Aqui que os auditores do Haiti nao nos ouvem, tenho que confessar uma coisa. Por vezes, ele fazia-se passar por um ouvinte e enviava mensagens para o nosso programa (Tous pour Haiti, um programa centrado em projectos de cooperacao/humanitarios). Era o Joel, de Carrefour. So o nome era mentira, ja que ele era orgulhoso do seu bairro.


Como nem sempre os nossos encontros diarios eram a dois, por vezes, quando a conversa era so nossa, falavamos em espanhol, para nao haver intromissoes. Tinha vivido an Republica Dominicana e agora estudava tambem na Universidade de Linguas de Port-au-Prince. Foi precisamente la que se encontrava no dia 12 de Janeiro. Mario Bazille nao escapou ao terramoto. Era o melhor tecnico da MINUSTAH FM, disputado e adorado por todas as equipas.
Ate hoje, ninguem aqui na redaccao improvisada conseguiu pronunciar o seu nome em voz alta. MARIO

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

domingo, 24 de janeiro de 2010

Uma especie de dia de folga...

Ontem, ao final do dia, o boss da radio decidiu dar o domingo aos novos jornalistas. Em muito contribuiram as minhas alegacoes de defesa. Num discurso que pecava por excesso, expliquei ao patrao (forma como o trato na presenca de todos, menos da dele) que os 20 jornalistas tinham vindo, um a um, pedir-me para irem a missa neste domingo, alguns mesmo chorando. Aqui que ninguem nos ouve (so le), confesso que so tres terao feito o pedido e nem um mostrou estar proximo das lagrimas. Um mentirinha inofensiva, com um final feliz: todos foram a missa e eu, finalmente, declarei unilateralmente a minha primeira folga desde o tal dia.
Ja dentro desse espirito, ontem ao final da tarde, resolvi ir jantar fora!! Eu sei, eu sei, uma ideia peregrina mas que encaixa no tal mundo de faz de conta em que vivemos aqui na Log. Na ambulancia ONU, fui percorrer as ruas de Petion-Ville, uma antiga zona burguesa, nos suburbios de PAP (versao francesa e curta de Porto Principe), que tinha, no periodo A.T. (Antes do Terramoto), a maior concentracao de restaurantes, ginasios e especie de bares. Agora, as duas principais pracas estao transformadas em acampamentos ainda sem direito a verdadeiras tendas. Barracas improvisadas feitas de paus e lencois dao um ar de mega coberta aos retalhos. Quando me preparava para regressar com a ambulancia a Log, o improvavel aconteceu: um restaurante aberto e um menu com mais do que tres linhas. Nem hesitei, atirei-me ao arroz nacional, banana frita e cabrito frito!E ainda pedi mais uma dose para levar na marmita para "casa". Com tanta actividade nocturna, a ambulancia (juro que nao fui eu) acabou por quebrar ligeiramente o recolher obrigatorio, agora fixado as 9 PM.
A noite de sabado (e a primeira vez que distingo os dias da semana, talvez por culpa da dita referencia as missas e consequente folga), foi dormida na ambulancia ONU. Foi a segunda noite consecutiva. Declaro, por isso, com todo o conhecimento de causa, que a ambulancia e o melhor veiculo da Missao para dormir. Mas, o (relativo) conforto para dormir, provoca um novo efeito: sonhar. Faz parte do pacote, presumo. Assim, pela primeira vez, dormi e vivi uma historia a querer tocar o real. Estava com um deles, primeiro surpreendida por ve-lo com vida, depois euforica, apesar da morte dos outros do The Club. Enfim, depois acordei de novo para a realidade. Aquela que ainda ninguem quer aceitar.
Hoje, Domingo, seria a tal suposta folga. Engano. Madrugar (5.40 AM), pegar na camara fotografica, carro para Cite Solei (a area mais pobre de PAP, considerada pela ONU em 2004 como "a zona mais periogosa do mundo", controlada entao pelos gangs), fotografar uma distribuicao de comida a cerca de 5 mil pessoas, entrevistar populacao no meu crioulo de marca pessoal (so eu entendo), regressar a Log, pequeno-almoco, saida na ambulancia para acompanhar uns pediatras a antiga sede da ONU, paragem no predio completamente derrubado de uma das sobreviventes do The Club, procurar pertences nos escombros, encontrar roupa interior, oculos de sol, malas (tudo, menos o que se procurava), assistir a remocao de dois corpos que estavam nos escombros, voltar a sede ONU, voltar a ver os corpos que foram transportados na "minha" ambulancia, pegar nos pediatras, num recem-nascido e respectiva mae, deslocar ao hospital de campanha junto ao aeroporto, regressar a LOg, almocar (as 5 PM), voltar a sair para ir a minha (sobrevivente) casa, tomar banho, regressar a LOg.... Como se percebe, a extensao da frase (recorde pessoal) e directamente proporcional a duracao do dia e respectivo programa de actividades.
O transporte dos dois corpos na minha "ambulancia-quarto-cama", fez-me concluir de imediato que teria, mais uma vez, de procurar '"casa" nova. Tive a certeza de que nao conseguiria voltar a dormir no mesmo local. Pelo facto de ter assistido a remocao dos cadaveres dos escombros. Pelo facto de ter sentido (e ainda sentir) o odor.
No entanto, reaprendi ha cerca de duas semana que tudo e relativo e que as mais fortes conviccoes podem ter data de expiracao muita curta. Ou seja, esta noite, la estarei eu na minha "ambulancia-quarto-cama", eleito o melhor veiculo 2010 da ONU. So ainda nao sei se quero que os sonhos se (me) aproximem mais da realidade.

P.S. Parece que vamos ser obrigados a sair duas semanas do Haiti. Cura de stress, dizem.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010
























E nao e que a radio caiu do ceu?
Primeiro, as movimentacoes nas antenas (sera esta foto "trabalhar as antenas"?), duas horas depois a chegada dos estudios!! O primeiro chegou por terra, o segundo veio (vi-o) do ceu. Que parelha!
Os dois estudios de producao estavam na anterior sede, mas sobreviveram. Chegaram hoje a nossa nova radio, para onde fomos evacuados ontem, depois do anterior "acampamento" radiofonico ter sido declarado local-cheio-de-rachas-a-abandonar-urgentemente. Tudo isto parece confuso, e e. (os acentos ficaram no meu antigo teclado, enviado pela Estelinha de proposito para o Haiti. Esta algures na sede da ONU). A equipa da radio foi, entao, desterrada para o fim da Log (Base). Estamos num dos extremos, junto ao acampamento dos capacetes azuis da Jordania. Hoje ja foi feita uma cronometragem: de um extremo ao outro da Log sao precisos cerca de 15 minutos! Pormenor sem importancia, nao fosse estarmos longe da Avenida principal, onde desfilam ONG's, Agencias ONU, Presidentes e Ministros, jornalistas,,, e do local onde apanhamos a carreira da ONU para ir a caca (tenho de deixar de usar esta palavra) da noticia.
Voltando a radiofonia, ja estao a caminho mais dois contentores-estudios. Sim, eu sei, nao ha fome sem...
A isto junte-se a cabana-redaccao onde estamos agora instalados, e arriscamo-nos a ser uma especie de RFI ou BBC ca das Caraibas. Bem, os recursos humanos e que ainda nao sao directamente proporcionais aos meios tecnicos. Pormenores.
Neste momento, sou responsavel por 14 dos tal vinte jornalistas (ou primos afastados de jornalistas) contratados a pressao. Tenho tentado, o mais rapidamente possivel, perceber os pontos fortes de cada um. Mas, estou um pouco desorganizada: nao me lembro do nome de ninguem, dou funcoes trocadas a todos eles, chamo o nome errado, enfim, ainda pensei pedir-lhes para usarem um papel com um nome ao peito (como alias os psico e psiquiatras fazem aqui na Log- andam com um papel ao peito a anunciar que sao psi qualquer coisa, como se alguem os fosse chamar e pedir ajuda no meio da Avenida principal da Log. Pode andar tudo com o trauma, mas interpelar o psico no meio da rua com todos a verem, isso e que nao!!!).
O algum senso que me vai restando, fez-me nao pedir aos jornalistas para usarem o tal papel, mas obrigou-me a criar 3 mil tecnicas para interpela-los e conseguir que digam constantemente o seu proprio nome, assim como se fosse algo natural. (exemplos: "Madame Mariana, eu, Marie Antoine, vou entao sair em reportagem ao tal sitio?"; "E eu, Antoine Joachim, posso ficar hoje com as breves?")
Todos eles, apesar da tal falta de parentesco com as noticias, estao com uma vontade forte de trabalhar. Alguns sem dinheiro no bolso (enterrado nos escombros e os bancos so abrem amanha pela primeira vez), oferecem-se para percorrer 3 pontos de reportagem, mesmo que sejam em lados extremos da cidade, em zonas agora a saque. Querem mostrar trabalho, aprender, assegurar que daqui a tres meses o contrato e renovado. E bonito de ver, mas aperta saber as historias que ajudam a explicar tanta entrega.
A devocao tem, no entanto, alguns limites. Menos uma semana de trabalho na MINUSTAH e ja comecaram as reinvidicacoes. Individualmente ou em pequenos grupos, vieram-me perguntar se tinham que trabalhar Domingo. La expliquei que iriamos definir turnos mas pedi compreensao para este domingo, depois de amanha. Nao convenci. Demorei a perceber o que estava em causa: querem ir a missa (obvio Mari). A Cristina (a minha sobrevivente), teve porem uma resposta seca e pratica (de quem esteve dois dias enterrada em escombros): "Mas que missa, se todas as igrejas ruiram?"
Hoje, despedimo-nos no aeroporto de mais uma amiga da Missao que nao escapou ao tremer da terra. Agora, quase todos os dias, despedimo-nos de alguem. Sao os unicos momentos e minutos que chocamos de frente com a realidade. Todo o resto do dia, andamos distraidos a trabalhar, a fazer de conta que nao e assim tao serio, a dormir pouco para nem sequer dar hipotese aos sonhos. E quando se sai para o terreno? Para o centro da cidade? Veste-se a capa de jornalista, assenta bem e e (quase) impermeavel. Quase.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

On Air

A nossa radio esta no ar desde segunda feira! Os estudios e todo o equipamento ficaram na antiga sede, na parte sobrevivente. Mas, mesmo sem eles, o carolas ca do sitio conseguiu transformar um escritorio (roubado ao dono do sofa) numa coisa parecida com um estudio. Depois andou a trabalhar nas antenas (seja la o que isso for) et voila! MINUSTAH FM!
Entretanto, chegaram tambem alguns tecnicos da Radio France International para trabalharem as antenas (?) , de forma a sermos ouvidos mais do que em Porto Principe e arredores.
Tudo perfeito, menos um "pequeno" pormenor: nao havia jornalistas (uns estao feridos, outro desparecido, outros viajaram para fora do pais). Num acesso de loucura nao burocratica e nada propria da ONU, foi-nos dada autorizacao para contratarmos 25 jornalistas de urgencia. Nessa altura do campeonato (dia 6 D.T. ou D.S.), a equipa da radio estava reduzida a 3 pessoaas (eu e mais dois produtores tambem estrangeiros) e o patrao estava fora. Tal o descontrolo (e a pressao da ONU em estabelecer uma radio de natureza humanitaria), que os novos jornalistas foram contratados de forma original. Um desses colegas deslocou-se numa tarde a todos as sedes das radios da capital, completamente destruidas, onde encontrou alguns jornalistas a porta, talvez a espera que um novo emprego caisse do ceu. E nao e que caiu?
No dia seguinte, deveriam aparecer aqui na Log cerca de 11 jornalitas. Conclusao: chegaram 21! Da-me a ideia que alguns sao irmaos e primos, porem, sem nenhum parentesco com o jornalismo. Ao longo do dia de ontem (terca, 1 semana D.T.), foram chegando mais e mais jornalistas a pedirem emprego. Vinham falar comigo, a implorar, a contar o pesadelo que estao a viver, a apelar a minha bondade. Eu, maos atadas, coracao espremido. Os contratos ja estavam formulados e a burocracia e inflexibilidade sao rainhas nesta Casa, o recrutamento foi de facto a excepcao a regra.

La fora ainda e pior. Foi criada uma barreira de seguranca a uns 200 metros da Log (Base) para empedir a multidao de haitianos de invadirem a base. Vem a procura de emprego, qualquer que seja. Alguns ainda tem marcas do terramoto, fisicas, claro, pois as psico todos tem.

Os vinte comecaram ontem e no inicio foi o susto. Exemplo de um falso directo: "em Champs de Mars, esta muita gente, mulheres sem bracos e sem pes, criancas sem bracos, muitos feridos de outro tipo, nao tem comer, nao tem agua. Voces deviam ver o que eu estou a ver. Mas eu sou os vossos olhos, estou aqui para informar e reinformar e voltar a informar. E uma tragedia muito grande"
(nota: este exemplo nao e uma piada. ipsis verbis)

Enfim, parece-me que vou ter muito trabalho pela frente. Falo na primeira pessoa porque os outros dois produtores estao a tomar conta da animacao e da equipa de news, composta por alguns dos nossos anteriores jornalistas que resolveram voltar. E um regresso ao trabalho com um bonus extra: podem assim ficar a dormir na Log (carro, caminha militar ou erva), em vez de dormirem nas grandes pracas da cidade, acotovelados por centenas de outros vizinhos.
A rapaziada contratada a pressao, parece ser boa malta. Chamam-me de Madame Mariana e Vous ...quelque chose... Ah pois e!!! Bem, tambem e verdade que um deles ofereceu-me uma cadeira, com a justificacao: 'fica com ela, eu nao preciso, sou jovem e fresco'
%&&*****!!!!!
Cristina e uma das mais novinhas do grupo. Esteve dois dias debaixo dos escombros da universidade onde estudava. Ao seu lado, os corpos das melhores amigas. No regresso a casa, a noticia que o irmao mais novo esta desaparecido e que a casa esta feita em po. Apesar de nao ter nenhum documento que a identifique, conseguimos convencer a Missao a contrata-la. Deve ser um caso raro na historia da organizacao, mais uma excepcao a burocracia.
Ela tambem aproveita o pacote completo: para alem de trabalhar, vem dormir aqui, esta cansada de estar na rua, e mais importante, pode comer, coisa rara estes dias ate nas melhores familias.
Hoje, enquanto me observava, disse: "tens que descansar e dormir, estas com um ar cansado... coragem!" Sem palavras. Como nao admirar o Haiti?

A noite passada foi pior que fecho de jornal, uma agitacao.
Primeiro a incognita de nao saber que carro vai calhar na rifa (espero que seja o bus, por favor o bus). Depois abrir uma carrinha de 9 lugares e o alarme comecar a tocar (fuga imediata). Finalmente alguem viu o ar de refugiadas das Marianas (eu e a amiga brasileira, companheira das noites sem dormir) e ofereceu-nos um carro. As 5 da manha, fomos acordadas porque alguem tinha que viajar para a Republica Dominicana com a viatura. Proximo destino: o primeiro autocarro que vimos pela frente, ocupado por uns corpos que ressonavam. As seis, nova agitacao. Um desses corpos deu um salto do banco de tras (esperto, ficou no melhor 'spot') e berrava algo. Mal me levantei. So o ouvia a dizer que o bus mexia, mexia. De facto, parecia que sim, mas o sono era tanto que preferi pensar que nao. So sai para a rua, porque fui empurrada pelo tal ressonas. Resolvi nao perder tempo a procura de opcoes para dormir, deitei-me no primeiro chao macio que encontrei.
Duas horas depois, acordada pelas formigas e pelo calor, fiquei a saber que afinal tinha havida mais um terramoto, desta vez 6.1. Fraquinho, muito fraquinho.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Uma semana depois...

Desde a chegada a Log (Logistic Base, a tal que se transformou na actual sede da Missao e de todas as Agencias da ONU) , que andam todos perdidos nos dias das semanas. O calendario transformou-se em dia 1, dia 2 (e por ai adiante) e foram apagados os dias da semana. Hoje, porem, impossivel nao saber: terca-feira, precisamente uma semana depois da terra ter fugido dos pes ( dia 7 ou 8? Eu acho que o dia 0 devia contar como 1) . Para ser mais precisa, as 16.53. Ainda nao tinha parado muito tempo para pensar na hora, mas houve algumas personagens que dedicaram-lhe muitos pensamentos e teorias. Foi assim que fiquei a saber que tinha muita sorte pois por volta das 5 (disseram-me) eu costumava ir fumar (na maezinha, nao fumo) para a varanda central da sede (que caiu com o resto do edificio). Mas nao foi so uma personagem a informar-me do meu horario de fumo. Depois da segunda, resolvi partilhar a conversa com a minha companheira de fumaca. E nao e que ela me informou que tb o nosso chefe-mor comentou a nossa sorte pelo facto de nesse dia nos termos atrasado no vicio? (desconfio que foi mais adiantar). Pasmada com esta constatacao! Nao pela varanda, mas , como e que possivel que toda a unidade saiba que vamos fumar la pelas 4.30/5? E nos, que ate disfarcamos, saimos separadamente, com o vicio enfiado no bolso. Que precisao!! Estamos rodeadas de espioes, e agora estamos aqui !

Uma semana e dificil de engolir. Todos percebemos que muito provavelmente o numero actual de desaparecidos ONU vai transformar-se numa outra estatistica. Nao ajudou tambem o minuto de silencio marcado hoje (nas tais 16 horas e53) e, mais tarde, a cerimonia de homenagem a 17 militares brasileiros (dois deles amigos proximos, com quem planeava churrasco para o passado domingo). E ainda falta a cerimonia de homenagem aos civis e a confirmacao de mais uns nomes retirados dos escombros. Os meus, aqueles que compunham o meu Haiti para cima e para baixo, The Club como eu nos chamava, ja fazem parte da pior das estatitiscas.

Foi imposta a Lei Seca na Log (Base). Os dois cafes (entretanto reabertos a 1/4 de gas) estao proibidos de vender alcool, o mesmo se passa no supermercado. Conselhos dos psico e psiqui ca do sitio. Oh, mas nem adiantou. Ao segundo dia (ou melhor, dia2), ja havia contrabando. Ha bebidas alcoolicas variadas e uma solidariedade na hora de saborea-las. Ontem a noite, numa das esquinas dos contentores, houve cocktail de bebidas, risos, e muito, muito choro. Falamos deles, de nos, do Haiti, do dia 0 (ou 1) e dos esforcos que foram feitos para salvar algumas vidas. "Na minha cabeca ainda tenho a imagem do nosso condutor, arrastado por mim para fora dos escombros, que mal escapou da morte, imeadiatamente se levantou com as calcas pelos tornozelos, e de pronto (e com tudo a mostra) exclamou: 'merci monsieur directeur'!" O director da historia (contada com imitacao corporal perfeita), fe-lo entre risos no meio de muita dor (soube umas horas antes que a mulher, minha colega, tinha sido encontrada sem vida) . Quando voltamos aos aposentos (carros, tendas, caminhas de militares e afins), ja nao iamos nada firmes mas seguros que foi das melhores festas que lhes (nos) podiamos oferecer.

Ando ha dias para ir ao supermercado da Log mas receio. Ja tentei enviar alguem em meu nome, ou ir disfarcada para que nao me reconhecam. Pq? Cheira-me que nao me vao deixar entrar. No tal dia 0 (1), as tantas da madrugada, logo apos a evacuacao, fiz umas das minhas cenas de veias no pescoco (qualquer coisa parecida com a cena do sofa). Por aquilo que (vagamente) me recordo insultei o dono e a loja e os empregados (e talvez os proprios produtos) com todas as formulas possiveis do mal-dizer (mas com toda razao do meu lado, naturalmente). Ora bolas, a culpa e das veias, acho. Pois minha nao e de certeza : )

PS Nas ruas a situacao e muito dura, claro, mas nao e totalmente fiel as noticias que se tem escrito. Sim, e uma crise humanitaria. Nao, ainda nao e uma crise de inseguranca e de poder largado nas ruas. Num outro dia, falarei menos de mim e mais do pais. Mas nao hoje. Hoje e o meu dia 7(8).




































segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

domingo, 17 de janeiro de 2010

Dia 5

Altos e baixos. Foi assim o dia 5.
Desde que fomos deslocados para a base logistica da missao, a minha seccao (Informacao Publica: radio, website, publicacoes) foi instalada num escritorio improvisado: ocupamos desde entao o antigo contentor da unidade CISS/DCISS (sim, eu sei, e imperceptivel, de qualquer forma, acho que nem os proprios q dirigem tais siglas sabem o que elas significam). Foi aqui que comecamos a tentar montar a nossa radio (perdeu o sinal de transmissao com o sismo), aqui comecamos a editar e a enviar as imagens para os colegas video de NY, aqui fomos escrevendo os artigos e colocando as fotos online. Em horario nocturno, o contentor tem servido tambem de acampamento (caminhas de militares, para acompanhar a respectiva racao diaria)
(nota: ja perceberam que ha um defice de acentos neste computador). Eu e mais carros, confesso. Desde o primeiro dia de sono, que sou fa das viaturas ONU. Os carros da ONU estacionados na base estao com as portas abertas durante a noite, so temos que escolher a matricula, ja que a marca e toda igual. Bem, minto. Na verdade, logo na primeira noite fui a caca (dava jeito a cedilha) de um veiculo com a outra Mariana (brasileira, jornalista) e saiu-nos a noite grande: uma carrinha de nove lugares, so para as duas Maris. Noite seguinte, voltamos ao spot. No meio do acampamento de veiculos, voltamos a encontrar a nossa 'UN van". Agora, avancamos na escala dos veiculos: desde ontem que dormimos no autocarro UN. Vinto e picos lugares so para as meninas... bem, lua de pouca dura. Acordei com os roncos de outros dois colegas e com o radio de comunicaoes nas alturas (durante a noite as comunicaos sao constantes, sobretudo entre os elementos da seguranca e as equipas de resgates).
Nada disto e importante, eu sei. Mas e talvez a forma de distrair a mente, de ir fazendo de conta que nada esta a acontecer. No entanto, ao mesmo tempo, todos aqui, sem excepcao, passam(os) horas a falar de terca feira, das quase 5 da tarde, de onde estavamos, como foi, o que sentimos ... Acho que ja todos sabemos todas as historias de cor, mas continuamos a fazer de conta que foi ontem e que ninguem sabe o que nos passou.
Altos e baixos, disse.
De manha conseguimos aquilo que andamos a tentar desde ha 3, 4 dias: conseguimos por a radio no ar. Foi uma alegria exagerada... ou talvez nao. Afinal, so 3 radios continuam a emitir na capital (existiam umas duas dezenas) e e o unico meio de comunicacao no pais. (algumas televisoes ate nao foram afectadas, mas nao ha electricidade e jornais estao sem impressao). Agora, podemos finalmente chegar a populacao: dizer onde buscar comida e agua, dizer qual o hospital de campanha mais proximo, dizer onde estao os familiares perdidos, simplesmente dizer... ja que ate agora ninguem disse nada.
A minha funcao hoje era seguir o Secretario Geral (SG) da ONU durante a visita relampago que fez a PAP (formula relampago que aprendi a atraves da emissao de cheques). Sabia que ia ser um teste: estava planeada uma visita as operacoes de resgate na sede da Missao, onde nunca mais voltei, e uma cerimonia de homenagem a duas vitimas muito especiais.
Faco aqui um parenteses para dizer que nao me apetece tocar na dor, ou chocar de frente com emocoes proprias ou alheias. Pelo menos nao aqui.
Passei entao pelo Christopher (o nome do antigo hotel que nos dava sede), revi alguns colegas (militares e segurancas envolvidos nos esforcos), fui sendo atropelada (e atropelei) pelos jornalistas que corriam(os) atras dos 15 segundos de som do SG. Confesso que mesmo 15 segundos ja foi pedir demais. (oops)
A segunda paragem da comitiva, composta por umas personagens vindas de Nova Iorque, dos melhores media da praca, foi em Champ de Mars. A grande praca onde se concentram os edificios do governo e o Palacio Nacional, que um dia ja rivalizou com a Casa Branca. Desde terca feira que o edificio esta partido ao meio. La dentro, talvez alguns ministros e senadores.
A praca esta transformada no maior campo de desalojados da capital. E nao, nao e verdade: a cidade nao esta a saque, as armas e as catanas nao estao a solta, a American Airlines nao esta a dar bilhetes de graca (ui, logo eles!!), ... Mas sim, ha casos de agitacao e alguma violencia, sobretudo quando helicoptero da F. Aerea Americana decide lancar (poucos) caixotes de comida para cima de um campo de desalojados, ou quando ha alguns biscoitos distribuidos que so tem a data de producao ou quando, e verdade, alguem rouba algo e acaba (acabou) por ser arrastado pelas ruas e atirado vivo para o fogo. Nao e rumor, ha imagens. Alias, nem eram precisas. Os linchamentos eram noticia frequente no Haiti, mas raramente na capital.
O programa da visita do SG incluiu ainda a conferencia de imprensa e o discurso ao pessoal da ONU (juro-vos que mesmo juntando os dois eventos seria dificil obter os tais 15 seg de som.-oops again!).
Por fim, a despedida as duas pessoas mais especiais da missao. Nem sei o que escrever aqui. Fiz o que tinha a fazer: liguei o gravador, gravei a cerimonia e, confesso, choramos.
O final do dia foi passado a ligar para os 10 novos jornalistas haitianos para a radio, contratados a pressao. Para ser mais precisa, esta tarde mesmo. (0s nossos vao para ja ficar em casa, a curar as feridas, a procurar sobreviventes, uma casa nova, um alento novo). Ainda nao conheco os novos mas ja gosto. Alguns despediram-se ao telefone com um "courage", como se a nossa dor ou perda fosse maior do que a deles. Nao e. Nem me atrevia a pensar assim.

Para terminar o dia em beleza, um belo combate de insultos e gritaria no nosso contentor (confesso que por vezes tenho um certo gosto por estas batalhas verbais, a rocar o fisico). O tal chefe das siglas estranhas (CISS/DCISS) chegou ontem de Nova Iorque e nao gostou de nos ver acampados na sua quinta (ele e seus capangas) (acho que ainda nao viram a tv). Hoje resolveu colocar no seu escritorio os dois sofas que estavam na rua e que tem servido de cama a dois colegas, uma delas gravida. Ela mesma, foi pedir-lhe para, pelo menos durante a noite, ceder-lhe o dito sofa. Resposta: "o sofa e meu, do meu escritorio, voces e que estao a ocupar o meu espaco". Depois disto, deixo a vossa imaginacao. Para quem me conhece, so posso dizer que estive no meu mellhor: com aquelas veiazinhas vermelhas a salterem-me do pescoco!! Oh que gosto me deu! Foi de tudo! E que bela sensacao de nao ter medo de nada e de nao ter nada a perder! O pior que podia acontecer ja aconteceu... ha 5 dias. Tudo o resto sao peanuts.

Nota: Acho que tambem deviam ficar indignados, o sofa e o escritorio do chefe das siglas esquisitas tambem e vosso (nosso)! Afinal, todos os anos contribuimos com uma percentagem para o orcamento da ONU. Temos todos direito ao sofa! Bora la?